PERDÃO, VINGANÇA E RESSENTIMENTO, ACEITAÇÃO OU NEGAÇÕES DO LUTO

Artigo de Vicente do Prado Tolezano. 

Amor, no seu sentido efetivo, é raro. A maioria não ama, não é amada e nem testemunha atos de amor. Perdão é forma de amor, a mais rara delas. Pouquíssimos perdoam genuinamente.

Perdão vem do grego aphiemi e do latim dimittre, ambos com sentidos de descartar, jogar fora, libertar, etc…

O perdão tem dois opostos: a vingança, na oposição extrema, e o ressentimento, em oposição menos radical, ambas formas de aprisionantes.

Há 2 condições absolutas da realidade perante as quais só o perdão é solução libertária.

A primeira condição é que todos já fomos, somos e voltaremos a ser vítimas de injustiças, traições ou danos diversos por forças alheias e mesmo próprias.

Todas as pretensões de pessoa, família, grupo, sociedade, nação, mundo, etc… perfeitos são só utopia mesmo e de patamar até propriamente infantil.

A outra condição respeita a que “o tempo não para”. Isso é fácil de entender, mas  paradoxalmente, é árduo aceitar disso decorre que a vida é necessariamente uma “sucessão ininterrupta de lutos (perdas)”.

Lutos não tem origem exclusiva em injustiças. Há lutos absolutamente naturais, benignos, a despeito de serem até muito doloridos. Lutos são inclusive a medula do nosso processo de amadurecimento, que, em bons termos, implica um “senso de renascer” também sucessivo.

A percepção dos potenciais de renascimento é diretamente decorrente da virtude de esperança, que, por sua vez, é íntima da orientação à produtividade, a qual ou é a cara ou a coroa da moeda com o “amor”.

“Esperança” é aqui tratada em sentido metafísico, de superação do “tempo do mundo”. O propriamente esperançoso não se apega a promessas ou expectativas de x, y, z pessoas, sociedades, nações, líderes ou grupos particulares. Se liga a um senso de um todo universal, de índole cósmica ou divina como fonte de sentido. É lá que há bondade infusa no curso das coisas, ainda que imprevisível.

Nesta perspectiva, o esperançoso e produtivo faz eco ao preceito evangélico de que é maldito o homem que confia no homem! Ou seja, não lhe é um grande escândalo a obviedade que o homem é, via de regra, maldoso mesmo.

O perdão não tem nexos necessários com “desculpa” a algum culpado, nem com “esquecimento” de algo que existiu, nem com necessidade de “conviver ou fazer as pazes” com o perdoado e nem mesmo depende do “arrependimento” do perdoado (salvo se cuidar do autoperdão, caso em que o arrependimento é uma etapa do luto).

Perdão é decisão (mais precisamente atitude), de sublimação ou resiliência dos potenciais próprios para produzir novos efeitos esperançosamente para ao futuro, libertando-se de efeitos maldosos de pretéritas danificação, desordem ou desvitalização, vindos de terceiros ou de si mesmo.

É como renascer em outro patamar de consciência após luto ou como um organismo que excreta alimentos tóxicos congestionados e retoma sua vitalidade até com mais consciência corporal.

É óbvio que quem não cultiva produtividade amorosa e esperança em sentidos mais sutis terá muita dificuldade para perdoar, pois, a rigor, tem, de antemão, menos rumos para “retomar”. Usando o paralelo orgânico, veja-se um corpo saudável tem muito mais facilidade em retomar a saúde após uma intoxicação que um intoxicado com nível baixo de saúde.

A saúde moral e anímica se chama “força de vontade”.

Analisemos agora os tipos que não perdoam, começando pelo tipo extremo: o vingativo.

O vingativo pseudo racionaliza sua desforra por meio de arranjos subterfugioso diversos envolvendo “compensação”, “honra”, “prevenção defensiva” e até mesmo a “justiça”.

Erich Fromm (1900-1980), filósofo alemão, foi muito feliz em registrar o impulso psíquico da vingança como uma “função irracional de desfazer magicamente o que foi feito realisticamente”. Fica evidente que o vingativo quer subverter o tempo para não ter que se enlutar.

Não sem razão, pois, é comum vingativo até mais se amargurem quando consumam a vingança, pois aí sua ilusão desaparece dando espaço ao choque de realidade e ele pode ver-se como “bobo” (ou “louco”) que até se prejudicou mais ao vingar-se.

Há pessoas que declaram vingança até como objetivo de vida e se enchem de vanglória em afirmar que não se preocupam em se prejudicar sua vida, contanto que prejudiquem a vida do outro que imputam ofensor.

Por vezes, a declaração de vingança não é declarada, só é ruminada internamente, mas não por isso menos existente.

Há hipóteses de desejo vingativos não é determinado a uma pessoa, mas difuso a uma generalidade, desde um grupo ou uma classe de pessoas, ou, ainda, à totalidade da ordem do ser.  

Os primeiros casos supra indicados foram salientados pela bela poética de Antoine de Saint-Exupéry: “é loucura odiar todas as rosas porque uma te espetou”. O último caso consiste no pior possível do ser humano, que é a “revolta existencial”, recusa obstinada do ser e por um esquema de vingança destrutiva de tudo – ódio geral.

A aludida revolta contra a ordem do ser implica, por óbvio, que a vingança também se volte contra si. Não se duvide dos horrores que alguém que não perdoa sequer a si pode impor-se sob um esquema de “loucura vingativa”.

Analisemos, agora, os ressentidos.

O esquema psíquico subjacente do ressentimento discrepa em inversão da vingança num ponto central: ao passo em que o vingativo não aceita o passado para não se enlutar, o ressentido aceita o passado para casar com o luto respectivo e tal que passar a negar a possibilidade de futuro!

Ademais, o caráter geral do vingativo é do tipo “necrófilo” o e caráter geral do ressentido é o do tipo “parasitário”, ambos carácteres improdutivos.

Descreve-se o ressentido como aquele que sente, ressente várias vezes, reconta várias vezes e até amplifica as dores de um mal sofrido, estacionando-se nos lutos que gostaria que fossem infinitos.

Louis Lavelle (1883-1951), filósofo francês, chama o ressentimento de “complacência” e até de “amor à dor”. Ele assevera que o ressentido “não busca repelir a dor para fora de si, mas, ao contrário, nutri-la e mantê-la no fundo de si”.

É, pois, um esquema psíquico de não perdoar para pseudo justificar as desistências do eu próprio. Cinicamente, o ressentido sugere que queria sim ser potente, livre e produtivo para o futuro, mas que, infelizmente, ele foi injustiçado (como se fosse só ele) por alguém ou algo de força maior e é tão grande a danificação que não é cicatrizável (e imperdoável).

Fica claro que, no cabo, o esquema oscila entre o vitimismo e culto expiatório. A experiência mostra também que não são incomuns os “ressentidos de maldades de que sequer existiram”.

Os parasitas-ressentidos constituem a maior parte da população. Não são necessariamente totalmente parasitados, mas mantêm debilidade (abatimento, mediocrização) sobre suas potências, vivendo sub-existências pseudo racionalizadas no esquema acima descrito.

Ainda que não façam maldades como os vingativos, seguem maldosos, no mínimo por um viés de muito amesquinhamento defensivo.

O professor brasileiro Luiz Felipe Pondé aponta na sua obra nominada justamente A ERA DO RESSENTIMENTO o fenômeno como traço social constante e afirma que “no futuro, não seremos lembrados como a era do iPad, nem da Apple, mas como a era do ressentimento”.

Em rota de fecho deste artigo, cabe observar exemplos biográficos de pessoas com forças notórias de perdoar, que reconheceram objetivamente as injustiças profundas de que padeceram, que aceitaram e elaboraram sublimativamente os lutos e seguiram a missão de produzir: Fiodor Dostoievski (1921-1981) e Viktor Frankl (1905-1997).

O escritor russo, todos sabem, só não foi carente de injustiças, entre as quais condenação à morte, suspensa só quando ele já estava alinhado no muro de fuzilamento e prisão com requintes de trabalho forçado na Sibéria por vários anos.

Seus múltiplos lutos foram cicatrizados a ponto de ele florescer como gigante da literatura e, inclusive, retratar a própria questão das profundidades humanas. Seu clássico Crime e Castigo, a rigor, desnuda minuciosamente o processo, árduo e sincero, de autoperdão do protagonista Rasknolnikov.

Passo a passo, o esquema de automanipulação para o mal (matar a agiota que o humilhava) do então “vingativo” Raskolnikov, seguido de seu arrependimento efetivo, incluído sua autodenúncia à polícia, até seu descanso redentor não só pelo cumprimento de pena de prisão que ele mesmo ajudou a receber, mas pela capacidade sublimativa do perdão, até para si.

Viktor Frankl, neuropsiquiatra austríaco, padeceu na pele e carne dos horrores nazistas, incluindo campo de concentração. Entre tantas humilhações, violações e mortes que ele testemunhou a olhos nus estavam até seus íntimos.

Ele reconheceu os lutos profundos dos e os elaborou sem se tornar vingativo nem ressentido. Da elaboração dos lutos ele chegou a, inclusive, compor outra via de psicoterapia, a Logoterapia, associada à busca de sentido da vida e cujo centro está a capacidade humana de, em qualquer circunstância da vida, escolher sua atitude, com muito destaque à decisão ativa de perdoar e construir o futuro.

Este articulista não sabe se Erich Fromm e Viktor Frankl se conheceram ou corresponderam entre si. Foram praticamente contemporâneos, ambos têm origem judaica, um alemão e outro austríaco, ambos proveram reflexões finíssimas e convergentes sobre o amor produtivo versus automanipulação destruidora. Fromm conseguiu fugir antes da opoteose da barbárie nazista que Frankl vivenciou na pele e carne. Ambos são autores obrigatórios a quem se ocupa do amor.

O perdão liberta dos lutos para podermos viver. Ele sempre é decisão individual, intransferível e disponível. Este artigo é publicado no domingo de Páscoa de 2.022. Bons renascimentos sucessivos a todos.

SP, 17/04/22

Um comentário

  1. Querido Tolezano!
    Este artigo merecce ser lido e relido muitas vezes! Acredito que esta clareza ao abordar estes “termos equívocos” seria a chave que a humanidade precisaria acessar para a construção do tal mundo mais justo, fraterno e humano, tão falada alardeada e tão pouco vivenciada!
    Contribuição preciosa!
    Temos um caminho a trilhar: da teoria à prática efetiva! É a nossa missão!
    Grata!

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