PARADOXOS, A RIQUEZA SEMÂNTICA - ENTRE SHAKESPEARE, GUIMARÃES ROSA E SÓCRATES

Artigo de Vicente do Prado Tolezano. 

 

William Shakespeare (1564-1616) assentou que “há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”. O nosso gigante-mor das letras, João Guimarães Rosa (1908-1967), lavrou asserto, a sua vez, que ombreia perfeitamente o bardo inglês: “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério, inclusive os fatos”.

Ambos os assertos desnudam a nossa insuperável impotência semântica, tal que todo nosso saber se reveste de ilusões e precariedade. Evocam, ademais, atitude de abertura para recepção dos sentidos sucessivos e infinitos da realidade em níveis crescentemente sutis.

“Ser ou não ser, eis a questão”, o dilema central humano conforme exposto pelo bardo, não é questão de inteligência meramente racionalista. É domínio de assombro metafísico mesmo. Bebe na fonte do paradoxo, pois até para o não ser, este há de ser, tal que mesmo o não ser seria um não ser “sendo”, em forma de gerúndio mesmo!

Numa camada mais alta de decifração de sentido, a tensão entre “ser ou não ser” implica perquirir se Deus e o diabo existem ou não, sem o que ele, o dilema, encartaria uma mera emissão fonética nonsense.

Rosa, por sua vez, invoca o senso amplo de “travessia” para dar contornos à tensão do ser ou não ser. Fez isso explicitamente na coletânea de contos Sagarana (pequena saga ou jornada) e mormente no Grande Sertão: Veredas.

Riobaldo, o narrador e protagonista do Grande Sertão: Veredas, era o “ser que era”, e porque atravessou o sertão, em contraste com os muitos “seres que não eram” porque, propriamente, “não atravessaram o sertão”, no sentido simbólico, não conceitualista, envolvido.

Há algo de podre no reino da Dinamarca”, Hamlet, protagonista da peça de mesmo nome de autoria do bardo, órfão com dor viva e crônica da orfandade, descobriu, em relação aos tipos mais perversos e também distraídos-escapistas do seu entorno e que impõem uma certa força ambiental do não ser.

Por seu turno, Riobaldo, também órfão com dor viva e crônica da orfandade, também descobriu que jagunços, catrumanos, militares, agentes políticos, fazendeiros, etc… não eram menos podres que os podres do Reino da Dinamarca – ao cabo e otimistamente eram apenas “condicionados”. Na dicção shakespeariana, o léxico equivalente seria o de “teatralizados”.

Afinal de contas e segundo a voz lúcida de Riobaldo, “o sertão está em toda parte… o sertão é do tamanho do mundo”, seja, pois, na Dinamarca, seja no norte de Minas Gerais ou alhures.

“Parte”, por sua vez, quer dizer mais que apenas “partes espaciais físico”, pois, Riobaldo segue a contar que  o “Sertão é o sozinho … Sertão: é dentro da gente.”

Ademais de transcender domínios físicos e psíquicos, ele também é dinâmico. Ele (aqui sob o léxico do real), o “real não está nem na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.

Ou seja, não só atravessa o sertão quem anda ou só se instala no ser quem tem ação, mas os próprios temas só exsurgem a quem já está em princípio de ação. Já vem de Aristóteles (384-322 a.C.) o tratamento de nossa natureza mais essencial como “vontade”, a qual, por sua vez, denota “movimento ordenado e ordenante”. No pensar do Filósofo, o homem voluntarioso é o ser que é (ou atravessa) e o não voluntarioso é o que não é (não atravessa).

Registre-se que Aristóteles não deu cabo de sua tese sobre a vontade sem ter enfrentado os paradoxos tensionais do finito e infinito e da parte e o todo.

No âmago, as questões encartadas versam sobre a liberdade (sugerida no léxico “veredas”). Ser ou não ser é “ser ou não ser livre”. Atravessar ou não atravessar, por igual, é libertar-se deixar-se cativo.

Liberdade aqui é liberdade metafísica, imanente, escavadora de si, tanto quanto transcendente, extrapoladora de si: senso unitivo, paradoxal, da profundidade com a altura!

Por mais, contudo, que sejamos livres, o sertão nos acompanha (está até em nosso crespo). Afinal, conta Riobaldo: “sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar”. Sucede que esses pensamento e lugares são infinitos. Liberdade, aliás, é o contato ou abertura para com o infinito. O cativeiro é que tende ao finito.

Riobaldo ocupou-se do dilema do ser ou não ser em toda sua vida. Seu ápice foi a decisão longamente maturada de sair do bando jagunço, consumando um primeiro plano de travessia e em que ele gozou de um senso de liberdade, superador de tantas dores de orfandade e a partir do qual ele narra ao interlocutor não indicado as errâncias do entorno e as próprias, incluída aí sua vacilação quanto a um suposto ou eventual pacto com o demônio.

Hamlett, por sua vez, fez sua travessia ao ser ao deliberar e cumprir de matar Cláudio, o assassino de seu pai, após, também, muita relutância interior. Por igual, não foram poucas suas errâncias e que contam também com encontros supostos e eventuais com vozes fantasmagóricas, corroborando os aspectos místico-mistériosos envolvidos em toda atividade semântica.

Semântica é uma síntese ou decifração da síntese, tal como dizer que algo é mais em relação ao que ele é! Essa é riqueza humana e será justamente nosso fino fio divino?

Não são meramente lógicas, nem contraditórias e nem incoerentes as sagas de Riobaldo ou de Hamlet. Elas são verdadeiras, nuamente reais, por que, mais acuradamente, são paradoxais, ou, em outras palavras, são abertas corajosamente aos paradoxos semântico e libertário. São muito mais ricas, assim, que o meramente racional-racionalista.

“Viver é dificultoso”, reverbera tantas e tantas vezes Riobaldo. Tomamos licença em agregar que viver é dificultoso porque é paradoxal.

Paradoxos não permitem o estático nem acomodações. Impõem  dinamismo tensional, de abertura à ação (travessia). Vão muito além dos domínios físicos-lógicos. O espiritual, o semântico e o libertário, sempre são paradoxais.

Espanquemos agora algumas confusões lexicais-terminológicas.

Se alguém afirma que “fulano está em Nova York e em Paris às 14:00 do dia X” esse alguém está a afirmar uma “contradição” lógica, gritaríamos. Contradição revela uma impossibilidade objetiva, sendo esse seu único sentido, justamente o de ser um nonsense.

“Eu pugno e defendo a vedação ao fumo, mas eu fumo e fumarei sem parar”. Isso, por sua vez, cuida de uma “incoerência”. É diferente da contradição porque é algo objetivamente possível (e, aliás, é comum), goza de sentidos fáticos, mas tende à valoração pejorativa de algum sujeito, como padecente de alguma errância, desordem ou fraqueza.

“Beltrano tem qualidades e defeitos”. Precisamente, esse asserto com oposição de predicados do mesmo sujeito veicula um “oximoro”. É diferente da contradição porque é algo possível e é diferente da incoerência porque não precisa carregar conotação pejorativa. Seu mister é salientar a complexidade do sujeito.

Vejamos agora o asserto clássico de Sócrates (470-399 a.C.) “só sei que nada sei”. Esse é, precisamente, um paradoxo. Afirmar que cuidasse de contradição seria não alcançar a inteligência meta-lógica envolvida. Também não padece de nenhuma pejoração incoerente. Ao reverso, é um asserto louvável de atitude. Não é também apenas complexo ou carregador de oposições constantes. Ele é propriamente paradoxal, tal que as aparentes oposições sintetizam-se e outorgam, cumulativamente, sentidos de abertura a possibilidades, louvor de atitude e um claro senso de plus transcendente em relação a meras complexidades.

Veredas nascem no sertão e nos norteiam neles. Veredas têm água (fluida) e o sertão aridez (estática). Quanto isomorfia sob aparência de oposição que Rosa conseguiu iluminar!

Paradoxo é para os raros. Sócrates foi um raro de carne e osso e que atravessou o sertão ou o Reino da Dinamarca ateniense. Riobaldo e Hamlet são raros de ficção, mas de ficção mais real que a maioria da realidades que são as realidades humanas do não ser, daquelas que são sem travessia.

Aí outro paradoxo de que tantas vezes nos olvidamos na contemporaneidade meramente racionalista: de que o Ficto é que é a porta de entrada ao Real!

Escrevo este artigo hoje porque acabo de voltar da “travessia física, a pé, de 200 km, do sertão mineiro concreto que inspirou Rosa”. Foi um abrir de portas da coragem de significar. Precisamente, de significar o SERTÃO.

As obras de Shakespeare e Rosa são predominantemente paradoxais no sentido aqui tratado e por isso mesmo inesgotáveis. Elas abrem, abrem e abrem possibilidades sem fim, tal que sempre nos lembram que nada sabemos e mais e mais quanto mais atravessarmos. São autores obrigatórios à nossa maturação “para o alto”. Seus pináculos, na visão deste articulista, são O Menestrel e Grande Sertão: Veredas.

SP, 26/07/22

3 comentários

  1. poliana disse:

    Grande Vicente! Mais um vez partilhando riquezas.

  2. Vanderleia disse:

    Excelente Artigo, uma reflexão ampla e magnífica. Certamente compreender tais paradoxos em nosso cotidiano não é tarefa das mais fáceis, contudo essa travessia de pensar e de buscar é valiosa em nosso processo de crescimento.

  3. Stela Bertone disse:

    Mentes brilhantes nos despertando outros sentidos que envolve à vida, novos horizontes do saber para melhor compreensão da existência num todo.

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