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DA ORFANDADE À LIBERDADE – TRAVESSIA – GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Artigo do Vicente do Prado Tolezano. 

Há animais que caem do ventre materno, saem andando e até mesmo já tomam conta de si. Outros recebem cuidados perinatais de nutrição e defesa até a chegada hora da partida do “ninho” para sobreviver, por si, no habitat natural. Toda dramaticidade animal é sobreviver.

Humanos são os animais mais vitalmente dependentes dos progenitores. Ademais de cuidados de ninho (nutrição e defesa), demandamos, e por tempo longo, de cuidados de “lar” (suprimentos psico-afetivos-linguístico-espirituais) até sairmos “do lar”. Ademais da sobrevivência, o humano tem o “drama do desamparo”.

Ninho só protege e prepara para a “sobrevivência no habitat”. Lar, por sua vez, é mais que proteção, pois também deve orientar à “superação do habitat”, outra expressão para “condições de emancipação”, sem a qual a vida não será propriamente humana.

“Viver é dificultoso” é asserto frequente de Riobaldo, protagonista de Grande Sertão: Veredas. Em sentido acurado, podemos bem ler o asserto no sentido de que só a vida humana é que é difícil porque só a ela é posta necessidade de travessia do estado de desamparo à qualidade da liberdade, outra expressão, por sua vez, da emancipação.

O habitat natural, sobrenatural e simbólico com que Guimarães Rosa ilustra a “travessia”, permeada de errâncias diversas, é o Sertão, em referência expressa ao sertão norte-mineiro. O romance consiste num monólogo de Riobaldo, expressivo do seu fluxo de consciência sobre a travessia, fluxo esse que está longe de ser retilíneo, mas que outorga o senso do tumulto que é emancipar.

Em beleza metafórica, Rosa nos conta pela boca de Riobaldo o paradoxo de que “o sertão está em toda a parte”, bem como que “sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar”.

Cabe a explicação de que “sertão” deriva do termo “desertão”, onde muito pouco há. A evocação semântica, pois, é que pouco é propriamente dado e tudo que valha decorre de esforço árduo de extração, seja de nós, seja do ambiente. Veredas são “pequenos caminhos de água”, como fios sutis de vida e que imprimem movimento sobre o Sertão.  

Muito se fala que o romance Grande Sertão: Veredas retrata a constituição do Brasil, tese que, pensamos nós, merece mais abono que reparos. Salientamos neste artigo que no aspecto da “orfandade essencial”, problema nefasto e crônico brasileiro, a veracidade do romance é certeira.

O todo do romance versa a superação do vazio do desamparo rumo à plenitude da liberdade pelo senso de “travessia”, abordagem que já é clássica na literatura como odisseias, regressos, jornada, peregrinação, etc…, mas o entrosamento do senso geral de liberdade como “superação de orfandade afetiva” real ou psíquica é destacadamente forte.

Sai da boca do próprio Riobaldo o dado social crônico da orfandade no Brasil: “orfão de conhecença e de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões.”

Não se perca de vista, contudo, que a estatura de Rosa era finamente metafísica e que, a despeito de que fale de dimensões sociais, a abordagem de liberdade, em toda sua obra, respeita à liberdade metafísica, muito mais sutil e relevante que os sentidos de liberdade política, jurídica, etc…

A ideia de travessia emancipatória de um desamparo de vácuo existencial para uma plenitude de liberdade metafísica pela como “superação do meio social rumo ao transcendente” se desume do todo do romance, do todo do legado roseano, do já aludido paradoxo envolvendo os lugares físico e psíquico do Sertão e também pela observação direta do Riobaldo, o único que fez a travessia libertária, ao expressar seu diálogo interior: “De que bando eu sou?” – comigo pensei. Vi que de nenhum.”

Só não é de “bando” nenhum (grupo sectário-identitário) quem saiu do habitat horizontal e é livre metafisicamente, o que quer dizer que alcançou ser “pai e mãe de si”, sem depender de lar ou de lar postiço.

A rigor, toda forma de amor é uma dimensão física com abertura ao metafísico e com fundamento neste. Qualquer fundamentação do amor por “meros sentimentos” não se sustenta, senão perante os intelectualmente débeis, pois são “meras dependências” travestidas de amor. Com os amores de paternidade e maternidade, de ordinário num lar, esse aspecto de porta metafísica é muito vivaz.

A demonstração explicativa de superação do desamparo ou vazio existencial pela liberdade metafísica, composta essa pela obtenção de dois elementos também paradoxais entre si – a autoestima e o senso de potência – é da lavra do filósofo e psicanalista Erich Fromm (1900-1980).

Autoestima significa alguém gostar de si simplesmente porque existe e a despeito de qualquer eventual errância de sua vida, de resultados ou desaprovações alheias.

Senso de potência, por sua vez, significa uma capacidade de gostar de si porque consegue fazer exigências perante si próprio e as cumprir.

É paradoxal gostarmos de nós mesmos simplesmente porque existimos, mas também exigirmos resultados de nós mesmos para gostarmos de nós. Não é porque seja um paradoxo que é falso. Afinal de contas, “viver é dificultoso”…, como o Riobaldo não cansa de repetir, entre, aliás, vários outros paradoxos.

A fonte primária para a recepção objetiva e assimilação subjetiva desses sensos paradoxais da liberdade são justamente paternidade e liberdade. Segundo o mesmo filósofo e psicanalista:

  1. a função materna, por excelência, nos imprime senso incondicionado de amor, tal que sempre há um refúgio seguro, ainda que falhemos, desviemos, etc… A maternidade apropriada é a antessala íntima da autoestima, no sentido de que, se assimilada, nos achamos valorosos única e tão somente por que existimos, tal como amor incondicional de mãe.

  2. a função paterna, a seu giro, inculca um dever de exigência, como um amor sob condição ou um dever de mérito para gozar do amor. Assimilado o senso de potência da paternidade, achamo-nos valorosos na medida em que somos capazes de realizações, tal como uma criança mostra seus feitos ao pai numa conquista de amor.

Fácil de ver que a dinâmica libertária não é meramente receber as funções paterna e materna, mas é assimilá-las e transformar-se em pai e mãe de si, condições de força para a “travessia transcendente do Sertão”.

O “dilema da travessia”, a que ora referimos em pronome demonstrativo dos “dilemas do desamparo e da liberdade” é posto a todos, sejam eles órfãos em termos objetivos ou não.

Não faltam exemplos reais de:

  1. pessoas que gozaram objetivamente das funções paterna e materna, mas, por motivos múltiplos, não as assimilaram no sentido proposto acima e tal que “seguem órfãos”, sem forças para a travessia individual, quedando-se erráticas no Sertão ao longo de toda a vida. Não aprenderam a viver a vida propriamente humana;

  2. pessoas órfãs objetivamente, que não gozaram das funções paterna e/ou materna ou as receberam até perversamente, mas que, mesmo assim, ao cabo de naturais errâncias no Sertão do mundo tornaram-se pais e mães de si e fizeram a travessia, tal que vivem vida propriamente humana.

Outro asserto digno de Riobaldo digno de destaque é que “… aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.” Leia-se o tal asserto como “saber extrair do seu sertão interior as condições de força para vencer o sertão de fora”.

Dessa forma, que se diga que uma criança é órfã se não tem pai e mãe e que se diga que um adulto é órfão se não se tornou pai e mãe de si. Nesse último caso, algum bando (no caso do romance, “bando jagunço”) fará o papel de pai, mantendo os esquemas de dependência vital que castram a travessia emancipatória, por medo do “sertão interior”.

Todos podem atravessar, no sentido de que todos têm como perseguir a liberdade. Claro, contudo, que “a força de um lar com parentalidade efetiva” facilita muito a jornada.

Contudo, ainda que todos possam atravessar, poucos atravessam concretamente. A liberdade metafísica é rara mesmo, fenômeno inclusive já anotado por Platão (428-348 a.C.), Aristóteles (384-322 a.C.), entre vários outros antigos.

A excepcionalidade da liberdade metafísica é constantemente anotada na obra roseana. No romance em atenção, só e só Riobaldo atravessou propriamente o Sertão. No conto, O Burrinho Pedrês, só o próprio burrinho “atravessou o rio”. Na novela, A Hora e a Vez de Augusto Matraga, só o próprio Matraga “alcançou a redenção” libertária.

Em comum, Riobaldo, Burrinho Pedrês e Matraga, eram pais e mães de si, solitariamente (na acepção de solitude), em relação de si para consigo e na contramão do meio social. Riobaldo também assevera: “quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago.”

A travessia, pois, é dilema sempre e só individual, sem nexo com sensos de liberdade social.

Como já dito, só Riobaldo se tornou pai e mãe de si, pleno de autoestima e potência. O romance centra nas sucessivas errâncias da travessia até a cristalização da liberdade dele e até a um ponto em que ele mesmo logrou refletir sobre ela e, então, narrá-la a um interlocutor. Mais que alcançar a liberdade, ele entendeu reflexiva e lucidamente que a alcançou. Sobre a cegueira dos não livres, jagunços em bandos, ele anota: “não podendo entender a razão da vida, é só assim que se pode ser vero bom jagunço”.

Jagunços são os analfabetos sociais: funcionam (estão em função de alguém), mas não significam (não captam razão/liberdade).

Praticamente todos os personagens do romance eram órfãos.

Riobaldo só tinha mãe até que ela morre quando ele ainda era pequeno. Foi, daí, acolhido por Selorico, um “padrinho”. Contudo, quando soube que o padrinho de Riobaldo, era, na verdade seu pai sem isso assumir, Riobaldo se revoltou e partiu errantemente pelo Sertão.

Riobaldo era forte em autoestima, inclusive por isso teve força para se revoltar ante o “desrespeito” de Selorico que, apesar de cuidar materialmente de Riobaldo, não lhe dava a dignidade de se assumir ser seu pai.

Havia vacilação de Riobaldo quanto ao senso de potência, tanto que foi Diadorim que muitas vezes impunha exigências de “coragem”. A travessia é, de certa forma, a busca da auto parentalização paterna que Riobaldo fez, incluindo um pacto/desafio junto ao Diabo, numa clara transferência de “dor de falta de pai”. O romance se encerra com a quebra da ilusão do dito pacto, tal que o diabo não é o caso, mas sim a “travessia humana” é o caso.

Diadorim, personagem também de destaque, era órfã, não fez a travessia emancipatória e, pois, seguiu órfã até o cabo. Morreu tragicamente na persecução da vingança do assassinato do seu pai que não a acolhia, ao mesmo como ela era.

Ao invés de se tornar “pai de si”, seguiu o pai, chefe jagunço, sob um esquema que cheira masoquismo de mendicância afetiva. Travestiu-se de homem, castrou-se em seu amor por Riobaldo e morreu de forma inglória.

Ela tinha alto senso de potência, ao ponto de encorajar o próprio Riobaldo, mas a debilidade em autoestima era evidente.

Os jagunços, de modo geral, eram órfãos tanto em termos biográficos quanto por não se emanciparem. Eram como cães sem dono que estacionam junto ao primeiro que lhes provê comida e cuidados meramente primários e a ele juram lealdade. Não cultivavam quaisquer ideais que não lutar mesmo sem entender os porquês da luta – vida puramente diversionista.

Sempre se destaca no romance a regra de que qualquer jagunço podia deixar o bando a qualquer tempo, mas pouquíssimos deixavam, senão por morte estúpida em combate igualmente estúpido.

Riobaldo contava que “… jagunço não passa de ser homem muito provisório.” Os próprios chefes jagunços chamavam-lhes de “meus filhos”, salientando a transferência psíquica do lugar do pai, sem superação da falta, contudo.

Os jagunços de Rosa equivalem às massas dos ativismos ou sectarismos passionais identitários, políticos ou religiosos do Brasil de sempre. Todo mundo buscando pai e fingindo que é valentão! Rixam por causa que desconhecem, ou seja, por nada mesmo, senão por uma manutenção idiossincrática, estúpida, da orfandade/carência essencial.

Outro extrato de órfãos indicado no romance é o da soldadesca. Tratados depreciativamente como se fossem “boys in the box”. Faziam barulho, mas eram de baixíssima eficácia. Eram órfãos despersonalizados e o governo era o pai impessoal deles.

Arranjo mais terrível para o drama da travessia, desprovido de qualquer fio mínimo de autoestima e de senso de potência, era o dos catrumanos. Eram órfãos na condição da mais absoluta e tal que foram mesmo escravizados de forma explícita e não meramente sutil como os demais que não fazem a travessia.

Como já dito, só Riobaldo atravessou o Sertão da orfandade. Ficou mais forte que as forças desse próprio Sertão físico quanto do vazio dele próprio. Ele entendeu tão bem o tema da liberdade conquistada tanto que não apenas “não foi servo do poder” quanto, igualmente, “abriu mão do poder” sobre os demais. Liberdade metafísica não coaduna com qualquer forma de ativa ou passiva de poder, ainda que sob nome de “liberdade política”, uma ilusão para ingênuos e incautos.

Viver é dificultoso! A condição humana ou é de desamparo órfão dolorido ou de liberdade com paternidade e maternidade exercidas de si para si, a autoestima e senso de potência. Não há “meio termo nisso”.

Este artigo integra uma série de reflexões instigadas pela travessia que o autor fez, a pé, de 200 km do Sertão mineiro que inspirou Rosa no seu romance. Outros virão. O legado de Rosa é inesgotável e é fonte de muita iluminação para as “travessias”.

SP, 16/08/22









6 comentários

  1. Gisele Cristine Matheus disse:

    Como são eficazes artigos sensatos! Muito bom!!

  2. Fernanda Marques Lisboa disse:

    Brilhante reflexão !!!

  3. Romilda Lima disse:

    Excelente texto!!!!

  4. Margareth disse:

    Excelente em todas as camadas de interpretação. Mas no que diz respeito a orfandade brasileira, ainda dá muito pano pra manga. Aguardo novas reflexões, mergulhando nessas cercanias tão sertão brasileiro. Parabéns!

  5. Nilson Nunes Balduino da Lapa disse:

    Maravilha!

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