A amiga do amigo do conhecido do meio parente da sobrinha da Zélia que era cliente do escritório agendou atendimento com o Dr. Rolézio. Ela se chamava Dolores. Adiantara à secretária apenas que era assunto jurídico sensível.

No dia e hora combinados chega a Dolores, mulher mais que quarentona e menos que cinquentona, de fisionomia cansada, trajes simples e de moda antiga como saião vincado, bata rendada, zero de cosmética.

Tomaram assento na recepção. Estava com uma criança de pouco mais de 10 anos, também em estilo à antiga – de sapato com pequeno salto na sola – e de quem não soltava a mão.

A Larissa, advogada jovem, integrante da Rolézio Advogados e que participaria da reunião, avisou ao Rolézio da chegada a cliente, e aclarou sua impressão esquisita.

– Rolézio, a mulher é estranha e o moleque tem cara de assustado. Eu ofereci café e eles não quiseram. Ofereci balas para o menino, ele acenou que queria, mas a mãe repreendeu meio sem educação. Tem coisa estranha aí.

– Vamos ver, Larissa. Ela veio por indicação do contato do contato do contato da Zélia. Acha alguma coisa para entreter o moleque e traga a mãe dele aqui.

Logo adentram, contudo, a Sra Dolores e o filho na sala do Rolézio.

– Boa tarde, meu prazer e sejam bem vindos – solta o Rolézio – seguido de qual seu nome? – dirigido ao menino, que, de fato, estava assustado como gato tomando banho.

– O nome dele é Lucas – atropelou a matrona.

– E o Lucas tem quantos ano?, replica o Rolézio.

– Tem 10.

– Olha, – iniciou o Rolézio com suavidade que não lhe era comum – não podemos fazer uma reunião de advogados com uma criança. Ele pode esperar lá na recepção. Achamos alguma coisa para se ocupar.

– Ele precisa ficar sim! Ele sabe já de tudo o que eu vou falar aqui. Sabem ele e Jesus Cristo lá do céu. Não tem porque esconder nada do meu filho e nem de Deus.

– A questão é clara. Advogado não fala com criança. Isso é regra ética. Se não for possível a reunião, ela não acontece – vaticinou assertivamente e em tom adulto o Rolézio com olhar bem focado olho a olho.

A mulher se balançou na cadeira. O moleque de cor de susto passou a ficar com cor de leite e recolhido. Ao cabo, ela cedeu e mandou o filho aguardar na recepção.

Para amenizar o clima, todos foram à recepção, mostraram ao Lucas que tinha revistas, balas, etc … e que ele podia ficar no sofá.

Retomada foi, então, a reunião entre os adultos Dolores, Larissa e Rolézio a portas fechadas como tem que ser.

A cliente contou longa história de insatisfações múltiplas sobre o matrimônio com o pai do Lucas, de nome Edson, e em intensidade do insuportável absoluto por um particular, que é que fura os olhos dos sapos na frente do filho.

– Fura os olhos dos sapos!!! Como assim? Exclamaram o Rolézio e Larissa quase que em uníssono e boquiabertos.

Dolores detalhou em minúcias. Ficavam os dois, pai e filho, no sofá e espetavam chaves de fenda finas nos olhos dos sapos ainda vivos e se gargalhavam do pequeno show de horrores. Depois, acabavam de matar os sapos com marteladas.

Os corpos dos sapos eram, então, acumulados em caixas de papelão atrás da cozinha.

Larissa se voltou ao Rolézio com expressão cumulativa de ojeriza, incredulidade e tragicomicidade.

– Mas quando que começaram essas coisas de furar os olhos os sapos – cortou o Rolézio – em voz alongada, própria de a quem ainda não caiu a ficha. O próprio postural dele mudou, assumido um olhar mais penetrante.

– Sempre foi assim, doutor. Desde que a gente namorava ele furava e matava os sapos. É que ele não gosta de sapos mesmo.

Rolézio e Larissa se entreolharam. Cada qual tinha cara de samambaia.

– Então, a senhora não pode se separar do Edson, pois é coisa dele que a senhora sempre soube, desde de antes de se casar. De um certo jeito, existe algum acordo entre vocês para isso. Normalmente, uma separação vem de alguma mudança ou ato repentino do outro cônjuge. Alguma coisa assim precisa ser explicada ao Juiz – falou o Rolézio, que se segurava com força hercúlea para não explodir em gargalhadas que não iam acabar nunca mais.

– O senhor não está acreditando em mim! Pode chamar sim o Lucas, que ele vai confirmar tudinho para o senhor. Pode chamar, eu não vim aqui para mentir.

A mulher estava agitada, olhos dispersos, balançava os ombros.

Esteve na ponta da língua do Rolézio perguntar se a mulher não estava é com ciúme da tara que o marido tinha pelos sapos e que queria mesmo é ela tomar umas espetadas do marido. No último instante, contudo, algum anjo cochichou no ouvido do Rolézio para não perguntar.

A Larissa já estava escudada em solene apatia, resposta, aliás, bem razoável ao grotesco da situação. Ficou claro que ela já tinha se rendido a não interlocucionar sobre o tema.

– Chama o Lucas que ele confirma tudo! Bradou algumas vezes a Dolores.

O Rolézio era bom em fazer ares de circunspecto, ombros altos, alinhados, voz grave, olhar sóbrio, com brilho que parece encerado. Parece que a cabeça dele até se levanta nos ares quando assume a magistralidade sentenciante.

Sacou o nosso Rolézio.

– Eu quero que a senhora tenha certeza muito grande de que nós da Rolézio Advogados, não apenas eu, mas também a Larissa e todos os demais acreditamos plenamente nesse horror que é o Edson ficar furando os olhos dos sapos. E mais ainda: que ele faz isso logo com o filho presente.

– Pois, é! Ele faz isso sim, na frente do Lucas. O Lucas pode sempre informar isso para o senhor.

– Não precisa! Está tudo muito claro. Nós acreditamos em tudo.

– Que bom.

– Infelizmente, porém, nós temos um problema muito sério e não vamos poder pegar a sua causa.

– Puxa, é mesmo?

– É sim. Eu tenho certeza que a senhora vai entender, mas essa coisa de mexer com os sapos é muito forte para nós. A gente não mexe com esses assuntos que envolvem sangue, sabe? Mas a senhora precisa ter certeza que a gente sabe da sua dor com esse assunto todo.

– Pois é, dói muito em mim tudo isso. Quando a gente namorava eu até que furei uns sapos com ele, sabe? Mas eu achava que ele ia parar com isso depois da gente casar. Nem depois do nascimento do Lucas ele parou com isso. Ele não para de mexer com os sapos dele!

– É muito sério, tudo isso. Eu tenho muita compaixão pela senhora – arrematou o Rolézio com aquelas sobriedades que são tanto mais eficazes quanto mais fingidas.

O olhar da mulher se alterou. De sisuda, ficou serena, centrada. Chegou ao ponto de dar um sorriso, ainda que moderado.

A Larissa teve presença de espírito e acompanhou-a até a recepção; colheram o Lucas e foram todos até o elevador para as despedidas fervorosas sob os risos de leveza da superfície.

Nesse meio tempo, o Rolézio quase que rolava no chão em gargalhadas. Larissa veio. Riram muito, um vendo a cara do outro, sem nada falar, senão pelas expressões faciais de olhos piscando. O questão, afinal, é daquelas que até se entendem mas não se verbalizam até para ficar mais engraçadas.

São Paulo, 07/09/20. O Autor.

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