Autor: Vicente do Prado Tolezano
São muitas as confusões semânticas entre Moral e Ética, ao ponto em que alguns tratam-nos como sinônimos e outros chamam por Moral o que outros chamam por Ética e vice-versa.
Antes dos nomes, vamos aos dois conceitos envolvidos na confusão.
O que eles têm em comum é que são ideais, no sentido de que envolvem um senso não meramente de descrição do SER DO MUNDO, mas sim do DEVER SER DO MUNDO e tal que o desenvolvimento de disciplinas da moral e da ética se prestam a orientar condutas para o “agir certo” das pessoas.
Uma ação pode ser “certa ou errada” para a persecução da felicidade humana, mas sem que exista paralelo exato se é “certa ou errada” para a viabilização da vida comum.
Este articulista abona a tese, seguindo as propostas clássicas aristotélica e latina, de que a felicidade é predominantemente um bem absoluto, atemporal e independente da cultura. Chamamos de MORAL o estudo de busca e sistematização dos valores (causas) para as ações humanas (efeitos) orientadas à felicidade (finalidade).
O sentido aqui empregado, a sua vez, de felicidade não se confunde com a mera posse de prazeres; acuradamente, vemo-la como a tomada de um fluxo ativo de perfectibilidade. Ou seja, mais acuradamente ainda, temos que é a progressão nas ações corretas que outorga a felicidade.
A exemplo, matar é ação pelas regras jurídicas, mas também é vedada em sentido moral absoluto, tal que, ainda que os Estados consintam o homicídio, sua prática não outorga felicidade sequer ao matador, pouco importando se ele até tiver “prazer” em matar ou o quanto ele finja a felicidade que não tem.
A ação imoral traz tristeza, ainda que tardia e difusamente percebida, caso em que pode se camuflar no sentimento de “angústia”.
O rastreamento etimológico de “felicidade” remete-nos à FELIX, da cepa latina, e a PHYO, da cepa grega, ambos concernentes semanticamente às noções de “produzir”, “fecundar”, “frutificar”, etc …
Disso, resta claro que o ápice do tônus moral é a prática do amor, que, no âmago, consiste em não só frutificar, mas também fortificar outros para que estes frutifiquem e tal que concorram à abundância de efeitos.
Fica evidente, nessa ordem, que MORAL, como aqui empregada em sentido espiritual-vertical, se entrosa com cosmovisão de “re-ligação” transcendente, tema próprio das religiões e da vida espiritual de um modo geral. Frutificação de que aqui tratamos, a seu turno, é a frutificação de bens espirituais.
A ilustração clássica magistral na defesa da existência de valor moral transcendente absoluta para ser captada pela razão como imperativo da felicidade foi-nos brindada pelo dramaturgo Sófocles (497 – 406 a.C.) pela peça Antígona, em que a protagonista de mesmo nome se esforça e desprende para, sob todo preço, convencer Creonte a enterrar Polinice, pois decorre da lei natural e divina que “os mortos merecem enterro”, nada importando a opinião do Rei sobre isso.
Antígona seria mais feliz (e mais “perfeita”) morrendo (ou seja, sob superlativo desprazer) para enterrar Polinice que se vivesse sob o peso da covardia de não ter enfrentado Creonte.
O cerne é que a porta da perfectibilidade moral é aberta apenas a quem queira voluntariamente entrar (liberdade), sendo louvável o estímulo a esse movimento de entrada, mas absurdo exigir a entrada à fórceps. Afinal, amor e atitude passados a contragosto e por medo do porrete são só medo mesmo e nada feito sob esse efeito tem o “caráter produtivo” de bem espiritual.
A soberania das exigências em temas morais é da “auto consciência”, o que, contudo, não implica dizer que moral seja domínio relativista, do subjetivismo, etc … Que não incorra o leitor no erro comum de confundir a possibilidade de “dissenso inter ou até intra-humano” como prova de relativismo da realidade.
Urge ver que a estrutura consciencial reta demanda a objetividade, mas é óbvio que ela pode “dessensibilizada”, “atrofiada”, “equivocada” ou até mesmo “pervertida”, limites da cognição e do psiquismo, mas não da realidade.
Mas vivemos em sociedade de multidões e essas vidas hão de ser viáveis para evitar o caos prático. Ao conjunto de estudo, sistematizações e considerações tendentes a fazer viável a convivência chamamos de ÉTICA.
Muito a rigor, a lógica central incutida na dimensão ética não é exatamente de uma orientação para uma vida feliz, mas sim é um senso de limites de exigibilidades recíprocas entre as gentes.
Noutras palavras, a estrutura ética, seja decorrente da cultura/costume, da lei escrita, estabelece grosseiramente: a) o que alguém pode exigir ou se preservar de outro (direito); b) o que alguém há de prestar a outro ou dele tolerar (dever).
As distinções do domínio moral para o domínio ético para o domínio moral são evidentes, pois trocam capturas de ordem natural/espiritual para convencional e senso puro de assunção voluntária de dever para um esquema de exigibilidade dualista de direito/dever e, ainda, a métrica de produtividade para a de distribuição.
Vivemos era superlativamente ética e minimamente moral, ao passo de, como adiantamos, tantos não “enxergam” as diferenças entre MORAL e ÉTICA, fenômeno já identificado por sociólogos como a “era dos direitos”, que, por sua vez, decorre de uma cosmovisão de que o “homem é filho do meio/sociedade”, abordagem írrita aos moralistas.
A chamada “ética cidadã”, “ética dos direitos humanos”, os “direitos sociais”, etc … têm cara, jeito e cheiro de estruturas morais, mas são sistemas éticos, eis que se focam nas “exigibilidades” e no horizonte social, num esquema em que “ser sujeito de direitos e deveres individuais e sociais” dentro de uma estrutura de distribuição (“justiça social”) é o ápice.
Desde uma simples regra de trânsito, passando por regulamentos escolares ou profissionais, regulação da economia, gestão do Estado, etc … está-se nos limites da dimensão ética. É evidente o quanto a ética não é universal, mas convencional por sociedade, por épocas, por interesses de ocasião, etc …
No sentido aqui empregado ética é a antessala do direito e da política, atividades em que a perspectiva consequencialista não só é muito forte, mas determinante.
É óbvio que atritos entre ética e moral existem aos montes e não são o busílis deste artigo, que se limita ao discernimento entre as duas dimensões MORAL e ÉTICA.
Essa questão – do discernimento – já foi enfrentada de certa forma por Aristóteles (385 – 322 a.C.) quando apontava as diferenças entre a lógica da Vida Bem Sucedida (certa forma de Ética), com métrica no reconhecimento e posicionamento social, (forma de bens materiais e prazeres), e da Vida Boa (certa forma de Moral), cuja métrica é um senso de bastar-se por fidelidade/entrega à dimensão contemplativa da realidade, outorgante de felicidade ainda que desprazerosa.
Sem estruturas éticas, a vida é simplesmente impossível. Sem estruturas morais, a vida é possível, mas é simplesmente triste/angustiante, pois não se aperfeiçoa nem bem se realiza.
São Paulo, 23/10/20
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