Liberalidade Amorosa X Avareza e Prodigalidade Desamorosas
Autor: Vicente do Prado Tolezano
Há quem tem senso de que dar é um dever moral (e, efetivamente, é), não sendo precipuamente importante o quanto de riqueza que a pessoa efetivamente tenha. A questão aqui envolvida é de disposição de caráter moral e não de riquezas objetivas (sejam econômicas, de tempo ou mesmo de afetos). É perfeitamente possível um pobre de posses ser “liberal” dando pouco do que tem e um rico não o ser, ainda que, objetivamente, dê até mais que o pobre.
As pessoas “liberais” como acima indicadas são tais que podem sentir-se tristes se não tiverem o que dar ou servir. A elas, tal como assinala Erich Fromm (1900 – 1980) “dar é a mais alta expressão da potência” e renova a vitalidade. Fazem eco ao adágio de que é rico não quem tem mais, mas quem dá mais, nem que tenha que gerar a riqueza de dinheiro, tempo, afeto, etc … justamente para ter o que dar.
Outra característica que acompanha os liberais é que não aceitam receber qualquer riqueza de fonte errada ou, se de fonte justa, recebem-na só moderadamente.
Seguramente, o leitor sabe testemunhar a raridade da louvável virtude da liberalidade, antessala contígua, senão mesmo cômodo interior da amorosidade, característica do mais raro tipo de caráter. Aliás, a mais acurada régua de medição do caráter humano é justamente a disposição para dar.
A sua vez, o vício mais predominante quanto ao uso da riqueza é a avareza/mesquinharia, que consiste numa deficiência quanto a dar e, em certas vezes, ganância/excesso no recebimento, tudo num contexto de prestígio da conhecida “vida acumulativa”.
Avareza não implica necessariamente desonestidade ou falta de veracidade, ao menos do ponto de vista imediato.
A falta envolvida na avareza, em essência, é de generosidade. O avaro não dá, senão eventualmente migalhas; paga as coisas apenas por obrigação e pode até sofrer exatamente por pagar o que seja efetivamente devido.
O vínculo do avaro, fica claro, é com os bens e não com algum senso de atitude ou excelência no manejo desses, senão pelo espírito de retenção, retenção e retenção. Isso tanto decorre quanto inculca um senso de descrença na vida e desconfiança generalizada, que podem ser crescentes.
Em muitos casos, o avaro carece de generosidade para consigo. Pode até privar-se de fruir de coisas razoáveis que seriam em seu prol justamente por louvor à acumulação dos bens. Pode também entesourar tanto seus bens ao ponto de que até castre o que viria a ser suas frutificações naturais.
Seguramente o leitor também sabe testemunhar casos em que ocorre a subversão em que o avaro se tornou servo da riqueza e não esta dele. Ou seja, é caso em que o meio vira fim, como, aliás, sói ser comum na estrutura dos vícios em geral.
Erich Fromm manteve a costumeira acuidade cirúrgica ao delinear as pessoas avaras: “… sua segurança baseia-se na acumulação e na poupança, sendo que gastar é visto como uma ameaça. Elas se rodearam como que de uma muralha protetora, e sua meta principal é trazer o máximo possível para dentro dessa posição fortificada e deixar sair dela o mínimo possível. Sua riqueza refere-se tanto a dinheiro e a posses materiais quanto a sentimentos e pensamentos. O amor é em última análise uma posse: elas não dão amor, mas procuram obtê-lo mediante a posse do amado”.
Aristóteles (384 – 322 a.C.) já apontava que é muito difícil e até mesmo improvável curar a avareza. Não poderia, aliás, ser diferente eis que como a liberalidade é das maiores virtudes (máximo de entrega), a avareza há de ser um dos piores vícios (vácuo ou mínimo de entrega), tal que a correção de caráter por fazer é muito ampla, praticamente uma revolução.
Menos grave e menos comum que a avareza, mas não isento de nocividades, é o vício complementar à avareza, que é o vício da prodigalidade, o qual consiste, a sua vez, nos excessos em gastar ou dar e na deficiência no receber.
A prodigalidade pela perspectiva do puro excesso no gastar tende a ser a mais deplorável (pois mais egoísta) e amiúde se associa à incúria ou até à incontinência do pródigo quanto a prazeres, sejam de desordem sensual, consumismo ou mesmo de um vão senso de orgulho em esbanjar por esbanjar.
A sua vez pela perspectiva do pródigo não de gastar consigo, mas de dar excessivamente, de ver que não se cuida apenas de aspecto quantitativo em si, mas também se inclui também dar a pessoas erradas (sem mérito ou caráter devidos para receber e fazer bom uso da dádiva) ou, ainda, dar em momentos e circunstâncias erradas ou por motivos errados. Ou seja, é como uma transgressão à advertência evangélica de que não se deve “dar pérolas aos porcos”, pois estes podem as triturar e até cuspi-las contra o doador.
Fácil ver que o pródigo, egoista ou altruisticamente, desperdiça riqueza, podendo até – e não é raro – incorrer em vulnerabilidade (eventualmente até virar um parasita) pela dissipação estéril dos seus bens (tanto materiais quanto psíquicos) por irreflexão ou por ignorância/ingenuidade.
Aristóteles advogava que o pródigo goza de mais meios de cura que o avaro, pois seu vício não é propriamente um vício de má disposição de caráter, mas de imaturidade, coisa que o fluxo natural da maturação, carregado de experiências de ingratidão e traição, tem condão de purgar, instigando a migração da pessoa aos patamares e limites virtuosos da liberalidade.
Ademais, há elementos comuns, de fundo, entre prodigalidade e liberalidade, tal que a “reforma” não há que ser tão grande quanto no caso dos avaros. De certa forma e em certo sentido, o liberal é o ex-pródigo que cresceu, com a vênia pelo empréstimo da estrutura frasal do Nelson Rodrigues (1912 – 1980), que propunha que não existem propriamente corajosos, mas sim ex-covardes.
Contudo, em casos extremos, crônicos, constantes, de padrão sucessivamente repetitivo, etc … de prodigalidade, não se pode deixar de ver disposição de caráter masoquista no pródigo, de quem não quer propriamente dar, mas sim vincular-se a outrem de forma passiva.
Engana-se quem pensa que o masoquista é vítima – ao menos vítima exclusiva – de uma situação. Amiúde, o masoquista promove a manipulação inteira justamente para que seja caçado pelo seu caçador e essa posição passiva pode-se dar “prodigamente” até a ruína dele mesmo, sob véus de sentimentalismos e outros expedientes de dissimulação.
Masoquismo sempre é falso altruísmo, cujo fundo é interesseiro, como uma tentativa de comprar e manter vínculos. Nesses casos, há vícios de caráter sim e a reversão é assaz difícil. Nem o masoquista nem o sádico tendem ao caráter produtivo-distributivo, ou seja, liberal. Tratamos detalhadamente disso na nossa Masterclass sobre sado masoquismo (clique AQUI para saber mais).
O que urge sublinhar é que dar corretamente – ou seja, ser liberal – demanda cumulativamente dotações morais e intelectuais.
Em termos morais, o liberal há de ter desprendimento/confiança na vida/senso de entrega e continência. Quanto à clareza intelectual, há de saber ler o caráter alheio para não agir como incauto, ponderar circunstâncias, meios e fins, para dosar quantidades certas e oportunidades certas para dar ou recusar de dar.
O alcance e manutenção da virtude são árduos mesmo. Até para dar/doar/distribuir, ou seja para cumprir mandamento universal, há de haver finos critérios. Sem eles e por causa da falta deles, passa-se o que todos estão a testemunhar: que as riquezas material e psíquica são predominantemente entesouradas ou desperdiçadas e pouca parte é efetivamente alocada para girar a roda edificante da abundância, sinônimo de amor na sua acepção produtiva.
SP, 09/01/21
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