Conviventes: Amáveis, Bajuladores e Rixentos
Autor: Vicente do Prado Tolezano
A amabilidade (afabilidade/cortesia/elegância/doçura) é virtude que expressa uma forma excelente de conviver. A pessoa de caráter amável se ocupa em agradar, de um modo geral, a todas as pessoas por um senso de sensibilidade à humanidade delas, pouco importando as respectivas condições socio-econômicas, políticas, educacionais, etc …
Seguramente, o leitor conhece pessoas que agem amavelmente aqui e asperamente acolá, ou, que viram a chave amabilidade/aspereza no mesmo ambiente, mas se alterado o interlocutor. Não são pessoas de caráter amável, mas manipuladoras, eis que agradam (bajulam)/desagradam (assediam) de acordo com interesses ou posicionamentos de poder.
Por caráter dizemos que é o padrão mais constante “ativo” de alguém (atitude), determinado pelas suas próprias condições internas, com pouco sopesamento das forças das circunstâncias. Se, ao reverso, são as circunstâncias que preponderam sobre a ação, o caso é de falta de caráter propriamente dito, trocado por, ao limite, “padrões de reação” (comportamento).
Ocupar-se de agradar em geral não implica, obviamente, agradar ilimitadamente, mas sim agradar quem e pelo que seja digno de ser agradado, tal como desagradar quem e pelo que seja digno de desagrado. Mesmo nesse último caso, urge sensibilidade até na eleição da forma adequada de desagradar/frustrar alguém.
Às condutas, viciadas, de agradar sem critério objetivo, seja por louvar algo não louvável de alguém ou mesmo exagerar no louvor que seja devido, se dão os nomes de bajulações ou dos sinônimos de adulações ou lisonjas.
São trocas ou tentativas de trocas desonestas de afetos. São vícios por excesso de amabilidade, tal que esta é só postiça, leviana. Constituem antessala dos esquemas de sedução, totalmente vazios de cuidado ou atenção à humanidade.
Às condutas, também viciadas no outro sentido, de desagradar sem critério objetivo, seja por não reconhecer valores devidos de alguém, seja por prover desqualificações pessoais (verbais, gestuais ou até físicas) desarrazoadas ou por outorga de indiferença/impaciência se nomeiam de rixa, gênero que reúne as espécies do despeito, empáfia ou menoscabo, por vezes explícitas ou insinuadas.
São vícios por déficit ou até vácuo de amabilidade. Também habitam na quadra dos afetos desonestos. Seu esquema de fundo costuma ser de orgulho/jactância.
Os encontros humanos evocam, ainda que inconscientemente, uma questão de “poder/medo”. Afinal, todo animal tem aparatos instintivos que não costumam dormir e o mais basal dos instintos é o par da luta e fuga, ligado a um senso bruto de sobrevivência.
Por ele, instigam-se as tensões: “será outro mais forte que eu e me implica uma ameaça” ou “se é mais fraco que saiba seu lugar e não me vire uma ameaça”, as quais vertem reações divididas pelo dilema de se “hostilizo/confronto diretamente” ou “neutralizo/distraio-o sutilmente”.
Louis Lavelle (1883 – 1951) foi muito assertivo e feliz no particular da densidade emocional imediata dos encontros com o “outro”: “… anuncia-nos ele a paz ou a guerra? Vem invadir o espaço onde agimos, reduzir os limites da nossa experiência e nos expulsar para se estabelecer no domínio que ocupamos”?
Aristóteles (384 – 322 a.C.) se ocupou expressamente da amabilidade, virtude que só se alcança com autodomínio ou temperança sobre e cujos efeitos se veem pela capacidade de conviver com as pessoas de distintas categorias “tratando cada qual com a deferência adequada”, ou seja, sob um senso de mediania, que, destaque-se, sempre é objetivo.
O filósofo grego assentou que o amável há até de se encolerizar, tanto que haja motivos para isso. Os estúpidos em geral são os que podem “encolerizar-se com a pessoa errada, por coisas erradas, mais do que o razoável, mais depressa ou durante muito tempo”; ou seja, têm afetos dissociados da razão.
Virtude é sempre medida pela régua da objetividade e tanto que a falta de cólera em situações pontuais em que seja devida é ou apatia afetiva própria de servos, vício da covardia ou, ainda, o combinado de ambas, que caracteriza o caráter masoquista, que de amável e amoroso, no sentido próprio, não tem absolutamente.
Masoquistas que bajulam seus sádicos ou que rixem com eles se pararem de bater existem na mesma proporção em que há peixes no oceano.
Só pessoas extremamente rasas, fracas, enxergam alguma força na brutalidade rixenta ou nas bajulações meladas. A rigor e na vastíssima maioria das situações, “a doçura está tão distante da fraqueza que somente ela, ao contrário, possui uma força verdadeira”, asserto de Lavelle, que, de certa forma, parafraseia um senso próprio da força do misericordioso.
A franca escassez da doçura/amabilidade/veracidade nos convívios sociais em geral revela o padrão de acuamento instintivo-animal, senão até bestial, que predomina.
É evidente que é possível a consideração esperançosa sobre se o “outro”, ao reverso de perigo, vai até ampliar os nossos horizontes, cooperar conosco e porque não, até eventualmente nos dar a dádiva espiritual da amizade. Tal consideração, contudo, demanda a superação instintiva e a elaboração existencial mínima. Ou seja, demanda virtude.
As contas dos vícios contrários à amabilidade não são só a restrição de cooperação material humana, mas incluem amargos desvios de sanidade psíquica.
Veja, no sentido acima, que interlocucionar, em termos próprios, retos, amáveis, objetivos, com a alteridade é medida que urge não só para a articulação coletiva material dos bens comuns, mas também porque é condição para amadurecimento do “diálogo intralocutivo” (consciência individual plena).
Sem amabilidade efetiva, troca-se interlocução social (palavra que poucos conhecem) por meras “interações sociais” (mais conhecida porque é quase a única ação que existe) meramente afetivas, basais, brutas e levianas como acima apontado.
É fora do razoável esperar que quem não cultive a amabilidade nos convívios externos, pratique-a consigo, pois fica, no mínimo dessensibilizado, e tal que será bruto consigo, inepto ao diálogo interior (que é nossa estrutura consciência até na solidão), podendo nem mais e ouvir e também, o que é frequente, muito se “auto adular”, caracterizando, no extremo, solipsismo e outras vacuidades da família nihilista.
Martin Buber (1878 – 1965) advertia que “o mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade de sua atitude”, tal que se nas relações para com a alteridade ele não as trata como um par “eu-tu”, ele se torna um “eu-isso”, pois não existe um “eu-em si” não relacional. Quem coisifica sistematicamente a alteridade por esquemas conceituais ou de resposta meramente psíquica coisifica-se, pois. Toda coisificação é evitativa justamente do encontro com a humanidade.
Uma pista fisiológica, entre outras, da ocorrência da coisificação e embrutecimento aqui tratado é a pele, que fica ressecada, poros fechados, tendente, não sem óbvia razão, à aspereza. Aliás, o corpo é um grande dedo-duro de desvio de afetos.
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SP, 16/01/21
Um comentário
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