064 – Ego, Personalidade e Distopia

Autor: Vicente do Prado Tolezano 20/04/2020

Crianças podem ficar nuas sem quaisquer solenidades, apreensões ou perda da espontaneidade. Vivem no que se chama “estado de inocência”. Estão absolutamente instaladas no seu presente, no seu aqui e agora, distantes de quaisquer consequencialismos. Estão sem medo, ansiedade ou equivalente a não ser que uma ameaça concreta e imimente venha à sua frente, pois não “projetam” nada.

Nesse estado, são desprovidas de toda “identidade” e, portanto, são quem são absolutamente, expressando sua plena “personalidade”.

Identidade e personalidade se articulam entre si como uma gangorra. Se uma está no alto, a outra está embaixo e vice-versa.

O “estado de inocência” perde-se logo e a ele não se pode mais voltar. À dimensão do “aqui” e “agora” agregam-se a do tempo que se recorda e a de projeções do porvir. Advém também o problema da mentira, daquele divórcio entre o que é e o que parece ser. Os medos podem ser antecipados é descoberta, claro, traumática, mas inevitável.

Quebrado o pote da inocência, entre o sujeito e a realidade toma assento a dimensão cogitativa, que permite questionar se tudo que é é mesmo ou só é como ilusão e, mais, as operações projetivas do futuro não param.

A mente cria um problema e também ela provê também uma certa solução, que é a identidade, uma capacidade de conceituar as coisas numa articulação entre gêneros e espécies por um critério de “estabilidade” (precisamente “estabilidade de movimento”).

Uma coisa identificada é mais familiar, diminui o fardo do medo com uma projeção (ou expectativa) dos movimentos dela. Obviamente, tudo o que é conceituado também é, de certa forma, preconceituado. Conceituação pode padecer de muitos erros, tal que as crenças/projeções de movimento do identificado também surpreendam.

Ademais, em se tratando de pessoas, é perfeitamente possível a adoção de “identidade falsa”, justamente para ser o meio de manipulação ou ludibrio com que o estranho “baixa a guarda”, confia, e se … ái!.

Essa identidade também chama, nas pessoas, de EGO, cuja função é estabilizar relações sociais num esquema de ordenação de projeções recíprocas de poderes e expectativas. Uma simples veste ou traje carrega consigo cargas de reações-projeções.

Advogados recém formados normalmente são tomados de medo com seus misteres e não por outra razão costumam bradar com seu “título de Doutor”, que, na sua personalidade nada impacta, mas altera a IDENTIDADE/EGO com que ele vai atritar socialmente, já esperando certas idissioncracias de outros, que, por sua vez também esperam/projetam certas idiossincracias do jovem “Dr.”. Cada qual, a seu modo, busca uma projeção mais ou menos estável “dos encontros humanos”.

“Quem é você?” é pergunta tantas vezes cretina, mas que não por isso deixa de ser  das mais comuns. Aí, se responde: sou advogado, sou sushiman, sou turista, sou blá-blu-blu, etc …, entre tantas qualificações semanticamente desconexas com algo concreto, MAS que psicologicamente outorga sensação ilusória ao perguntador que “há alguém mais conhecido”, ainda que somente se tenha ouvido “blá-blu-blu” ou outro nonsense qualquer.

Não se assuste, leitor, com o poder que as ilusões têm, isso no sentido de dizer o quão intenso é a busca humana por elas.

Há um sentido da indispensabilidade da IDENTIDADE EGÓICA para viabilizar a vida gregária e ordenar as cadeias de mando, de distribuição material, etc …, mas a linha divisiva disso para uma plena DISTOPIA coletiva é muito fina.

Imagina o nosso “jovem doutor” que, além do título de douto queira, como é comum, se assenhorar do título de “chefe de departamento”, de “conselheiro de não sei quem”, de “membro honorífico da Sociedade do Ócio Ocioso Dourado” entre miríades de penduricalhos de egos expandidos. A consequência será seu afastamento, senão até perda, da personalidade.

A IDENTIDADE/EGO opera na nossa dimensão social, sempre de índole relativa, pois somos seres sociais “relativamente aos demais”. A personalidade é que é absoluta e que, pois, é o nosso SER EM SI e POR SI no bom sentido, libertário, do termo.

Porque as pessoas têm graus densos de carência existencial, o apego egóico, ao ponto de que o próprio sujeito passa, até hipnoticamente, a acreditar que ele é o falso centro aplaudido pelos outros é tão comum, sem deixar de ser devastador.

Há bens sociais (honra, respeitabilidade, status, reconhecimento, etc …) e esses bens outorgam “prazeres”. Pessoas de inteligência atrofiada (a maioria), contudo, confundem prazer com “felicidade”, a qual, contudo, só decorre da “assunção da personalidade”.

Estamos efetivamente dizendo que há fuga da felicidade para pseudo contentamentos meramente egóicos, coisa mais frequente que peixes no mar!

A constituição da personalidade é um esforço muito grande para a retomada da inocência perdida, a qual ainda que não sa logre, pode-se dela ficar mais perto.

Estar aqui, agora, espontaneamente presente em si e consigo, despido de egos é “comovente”. Pode despertar choro de alegria. Chama-se também de experiência de encontro ou instalação na realidade. Ela supera o medo não por uma pseudo entrega de estabilidade nas pessoas, mas por uma “estabilidade em si”, decorrente diretamente da instalação na realidade objetiva. As místicas chamam isso de Fé e Esperança.

A vida social pede e entrega distopias para ser viável. “Comunidade, Identidade e Estabilidade” era, não sem razão, refrão na sociedade distópica que Aldous Huxley (1894 – 1963) concebeu no clássico Admirável Mundo Novo.

Imagina um mundo em que há “nós” sem os “eus”. Exatamente essa é a perspectiva distópica, de fora do lugar, fora de si e num esquema em que todos os circundantes podem estar sob o mesmo processo também. Platão (428 – 348 a.C.) já brindara a humanidade com a clássica Alegoria da Caverna advertindo para a distopia. O romance Nós, de Yevgeny Zamyatin, 1984, de George Orwell, entre outros primores literários também atentam ao fenômeno da força hipnótica do ego.

Independentemente de se a sociedade se tornará uma distopia totalitária absoluta, é fato que muitos já estão em distopia por renúncia de suas personalidades dentro do esquema que apontamos acima, sem embargos de outros esquemas, a exemplo da idolatria, da atitude masoquista, etc …

Existe uma regra prática para os identificar: dispa, destrua, desqualifique ou ironize as roupas ego-identitárias deles. Fale para o nosso jovem Doutor que o título dele impressiona provavelmente só a mãe dele e ninguém mais e assaque uma grande risada. Se o MEDO, abatimento ou perda de estima dele emergir com a sua fuga da situação ou um ataque errático contra você, é caso de gente despersonalizada e “fora de si”.

A sua vez, desqualificar gente bem personalizada é como dar muro na parede. Será o personalizado que vai rir de ti, num tipo de riso feliz inocente igual à criança nua.

Tão simples e tão cruel assim se pertencer ou fugir de si.

A reprodução do texto é livre, devendo ser citada a fonte e preservada a unidade do pensamento.

Vicente do Prado Tolezano é graduado em direito peça PUC/SP e Mestre em Filosofia pela Faculdade do Mosteiro de São Bento de São Paulo, com investigação sobre a Metafísica de Aristóteles. É diretor da Casa da Crítica e da Tolezano Advogados.

Tem formações complementares diversas na área da Gestão, Psicanálise, Mediação, Filosofia Clinica, Lógica e Argumentação e outras sobre a Alma Humana.

2 comentários

  1. Fernanda Lara Pupo disse:

    Prof. Vicente
    Parabéns pelo artigo!
    Obrigada

  2. Jose Marcial de Godoi disse:

    Excelente texto. Lembra muito o livro de Ohsoo sobre o Ego. Parabéns.

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