069 – Vergonha e Culpa – Alerta e Curas

Autor: Vicente do Prado Tolezano 17/07/2020

          Pela expressão SINDERESE, os antigos denotavam uma capacidade inata pela qual se reconhece de “dever ser”, ético ou moral sobre todos nós, com efeitos desde nossa estrutura somático-afetiva até a fina intelecção.

         Na perspectiva das emoções, sentimos moléstia, incômodo, irritabilidade ou abatimento por força de ações, omissões ou estados nossos infratores de algum senso de dever, seja porque i) são sabidos ou pensados por terceiros, ou ii) nós sabemos deles.

       O primeiro caso é próprio da vergonha, emoção social/relacional e em que o senso de reputação ou opinião/comparação pelo outro relevam. Essa emoção carrega um senso de falha ou de inferioridade.

       O vício oposto extremo à vergonha é o orgulho e a virtude de mediania entre tais os opostos é a modéstia.

       Animais domesticados podem sentir vergonha. Um cão domesticado se agacha e põe o focinho no chão quando o dono flagra que ele urinou fora do lugar. Em humanos, a fisiologia usual  é enrubescer, em especial no rosto, orelhas e pescoço.

       O segundo caso cuida da culpa e cujo auditório é a consciência interior.

       Propriamente, culpa é desordem/desarmonia das entre a vozes interiores pela ruptura de algum dever de amar, pouco importando se se cuida de regra social ou não.

      O oposto extremo da culpa é soberba e a virtude de mediania entre esses opostos se chama estado de inocência, normalmente revestido de leveza e espontaneidade em decorrência da harmonia entre as aludidas vozes interiores.

       Culpa é exclusividade humana, pois o amor no sentido próprio também o é.

       A expressão fisiológica da culpa é similar à da tristeza, podendo provocar palidez, olheiras, abatimento e postura curvada.

       Alguns (a exemplo, Nietzsche, 1844 – 1900) sustentam que a culpa não seria natural, mas um construto social para manipular pessoas, i.e., mero mecanismo de poder, posição que não abonamos.

       Salientamos que a inexistência de culpa suprimiria a essência humana, eis que é justamente a estrutura consciencial (no sentido fino de “consciência do coração”) o elo do natural para com o sobrenatural, tal que negar a culpa é negar o amor (que também é sobrenatural).

       Inexistência de culpa é justamente a marca mais saliente dos psicopatas (desumanos), aquele acometidos da doença existencial mais grave, que é a incapacidade de amar (às vezes, sequer a si).

       É evidente que, como qualquer afeto, culpa pode ser manipulada. Inclusive o psicopata, apesar de dela não padecer, entende-a, tanto que a subverte contra suas vítimas para que elas se sintam culpadas sem motivos reais para isso.

       As tradições místicas costumam dar aos demônios justamente a qualidade de não padecer de emoções, os quais também são desprovidos da possibilidade de arrependimento e aprimoramento existencial, justamente ações instigadas pela culpa (e pela vergonha), que servem de “cartão amarelo” de atenção para com as condutas próprias.

       Ambas emoções podem andar juntas ou separadas até com respeito a uma mesma ação, omissão ou estado.

       A exemplo, alguém pode ter faltado a um compromisso por puro esquecimento e, pois, se envergonhar por isso perante os demais e apenas isso.

       Alguns, ademais da vergonha, carregarão também culpa interior pelo mesmo ato de falta (às vezes até aguda e com ressentimentos cíclicos).

        Alguém pode se sentir plenamente culpado por ter deixado de ajudar uma pessoa em dada situação, mas não se envergonhar disso, tanto que pode falar com facilidade desse seu estado interior a terceiros e não se importa com as críticas alheias.

       Vergonha, não raro, pode existir também por ato de terceiro relacionado ao paciente como, por exemplo, a de pais por atos de filhos e vice-versa. Por sua vez, culpa, no sentido próprio, não emerge por ato de terceiro.

       A questão importante: como curar e prevenir a vergonha e culpa (ou as faltas delas)?

       A elaboração apropriada delas é árdua e complexa e, obviamente, não há solução prêt-à-porter. E nem um simples artigo gozaria de fôlego para dar o mapa do tesouro. Faremos considerações gerais apenas.

       Ambas emoções provocam aguda confusão mental no paciente e é justamente de “juízo” equilibrado que urge ter. A rigor, deixar as emoções sem a mediação racional implica em mais confusão mental num fluxo crescente.

        É muito útil, em todo o processo elaborativo, contar com confidente qualificado, que zele por maior objetividade às reflexões do paciente. Se, contudo, não houver disponibilidade de gente existencialmente mais madura que ele, que, então, o paciente se vire por si só e sem socorro de “palpiteiros”.

        A despeito de ser reação comum, a pior opção para tratar qualquer afeto ruim é negá-lo, situação que não afasta os efeitos ruins e abre as portas à dessensibilização que, ao cabo, pode desintegrar uma personalidade. Isso sem contar, ainda, com a “perda de oportunidade” de não refletir as condutas, a razão de ser, como já dito, da vergonha e culpa.

       Assumido o afeto (ou a falta dele), cabe perscrutar se se funda associadamente a algo real ou a alguma forma de  ilusão/projeção/delírio/conjectura.

       Após, que se avalie a razoabilidade da intensidade e duração do afeto.

       Todos conhecemos muitas pessoas que se pelam de vergonha de seu corpo ou parte dele, situação completamente irracional e injustificável, mas que pode gerar danos muito pujantes.

       Também todos conhecemos mentirosos que não se envergonham, bem como pessoas que enganam outras e não sentem culpa (podem, em ambos os casos, até ter graça e orgulho disso).

       Os exemplos acima podem variar muito em intensidade, estar em circunstâncias pontuais ou até constituírem padrão repetitivo crônico de vários sujeitos.

       O cume patológico são os masoquistas que sentem vergonha e culpa perante seus sádicos e os sádicos que não têm culpa alguma em destruir os seus masoquistas.

       Não serão raros os casos em que os apitos emocionais são absolutamente saudáveis, adequados e importantes, pois nós erramos e havemos de nos examinar (propriamente, é exame de consciência, aquilo que exatamente somos).

       Aí, há de haver, como recursos sine qua non, a aceitação humilde dos fatos, arrependimento efetivo, pedidos de desculpas, reparação de danos, reinícios de ciclos e tantas vezes o pleito de perdão (até o auto-perdão), todas, por sua vez, formas de amor e corretivas (curativas em termos psíquicos e redentoras em termos anímicos).

       Sem isso, a dessensibilização galopa e os efeitos da vergonha/culpa não elaboradas/purgadas/redimidas emergirão adiante em formas, que mesmo que sutis a olhos brutos, são amplificações das moléstias iniciais, podendo alcançar efeitos como isolamento, irritação, remorso, abatimento (incluída depressão), angústia e embrutecimento (até estupifificação).

        Não examinarmo-nos é uma forma de desistência de nós mesmos e pidona de cartão vermelho existencial. O corpo avisa e à inteligência cabe ordenar.

A reprodução do texto é livre, devendo ser citada a fonte e preservada a unidade do pensamento.

Vicente do Prado Tolezano é graduado em direito peça PUC/SP e Mestre em Filosofia pela Faculdade do Mosteiro de São Bento de São Paulo, com investigação sobre a Metafísica de Aristóteles. É diretor da Casa da Crítica e da Tolezano Advogados.

Tem formações complementares diversas na área da Gestão, Psicanálise, Mediação, Filosofia Clinica, Lógica e Argumentação e outras sobre a Alma Humana.

2 comentários

  1. Interessante e inspirador…

  2. Katia disse:

    Artigo magnifico, nos leva a esquadrinhar o nosso interior e a entender a importância de saber de onde veem tantas expressões fisiológicas que muitas vezes nos acompanham. Interessante entender o fato de que podemos nos sentir culpados pela ação de pessoas desumanas. Enfim, são muitas as reflexões.
    Obrigada.

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