066 – Desejo, Idiossincracia, Vontade e Constituição da Vida Humana

Autor: Vicente do Prado Tolezano 24/06/2020

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Desejos (nas espécies de apetites e ardores) são, via de regra, involuntários e impelem à realização pronta de prazer a eles associados. Passam-se predominantemente na nossa dimensão material e integram a categoria da paixão.

Têm extensão exata da nossa vida orgânica, pois só não há mais desejos quando se morre.

O tão só fato de alguém padecer de desejos quaisquer (inclusive os maus, obscenos, criminosos, hediondos, etc …) não implica responsabilidade moral qualquer. A não resistência ou incontinência a desejos maus é que pode ser rasgo moral.

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Podemos também nos auto sugerir desejos ou subterfugiarmo-nos a não resistência aos desejos. Ou seja, podemos nos valer de ação explícita ou sutil para instigar paixão em nós mesmos, abrindo as portas a seus efeitos “com aparência de que não fazemos isso”.

A essa situação, normalmente consentimos com fundamento em “opiniões” (saberes irrefletidos, levianos ou desprovidos de raciocínio) ou narrativas diversas, as quais Aristóteles (385 – 323 a.C.) chamava de “prévia escolha” (“arbítrio” em algumas traduções), uma zona de lusco-fusco entre as dimensões desejantes e volitivas propriamente ditas. Os nomes de “achismo”, “sentimentalismo”, “idiossincracia”, “subterfúgio” ou “leviandade” também são aplicáveis.

O “q” marcante da “prévia escolha” é que é dita prévia no sentido de que vem de uma superficialidade ou externalidade. Não é uma elaboração efetiva própria. Praticamente cuida de arrumação de “valores de ocasião”.

Atentemos que podemos todos perfeitamente (e é comum) ter opiniões sobre diversos assuntos sem jamais nem termos propriamente entendido a própria opinião, suas causas e até sem verificar sem elas têm algum foro de razoabilidade ou se são só ilusão.

Esse esquema mental existe de forma inevitável porque há incessante demanda de preferências e preterições sobre nós, mas tantas e tantas vezes, ele é meio das auto-manipulações de consciências, auto sabotagens, dissociações internas, escapismos, etc … tão comuns quanto peixes no mar.

Grosso modo, o próprio processo de hipnotização de alguém passa por lhe (ou “se”) fazer confundir a mera “prévia escolha” como se um juízo sóbrio-próprio fosse.

Quem não conhece tipos de gente “descontrolada” frequentemente mas quase sempre quando lhes convêm? São, em boa parte, jogadores do jogo acima, de um descontrole que foi “consentido” ao menos levianamente.

A concessão da “prévia escolha” implica dever/infração moral. As próprias legislações tratam a questão sob institutos jurídicos bem contornados da culpa (negligência, imprudência e imperícia), dolo eventual (assunção ou descuidados levianos de riscos de dano) e vedação de comportamento contraditório.  

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A sua vez, a dimensão propriamente formal-espiritual-volitiva nossa se compõe da razão (pensamento, raciocínio e senso de proporção), a qual (i) percebe e julga desejos, (ii) verte/reverte/converte as “prévias escolhas” e mesmo as condições delas (processo de elaboração) e (iii) estatui FINS e VALORES propriamente constitutivos, combinada (a razão) com a VONTADE DELIBERADA E EXERCIDA, que é o nos FAZ SERMOS propriamente, purgando das “ilusões de ser” (pseudo razões e fracaas vontades).

Toda prévia escolha ou arbítrio, no sentido usado aqui, implica, como asseverado, um mínimo de assentimento (lusco-fusco) da vontade, mas a deliberação propriamente volitiva pode ocorrer sem prévia escolha: “deliberamos sobre tudo o que fazemos prévia escolha, mas não fazemos prévia escolha sobre tudo o que deliberamos” (Aristóteles in Ética a Eudemo).

A deliberação propriamente dita é ato de QUERER/PREMEDITAR/PROJETAR/TOMAR INICIATIVA, é objetiva, no sentido de que se refere a algo objetivamente considerado, e é claro que se sujeita sob plena responsabilidade moral, oscilando entre polos que as legislações nomearam de BOA FÉ (se há justiça na vontade) e DOLO (se há injustiça na vontade).

Ninguém escapa da balança moral, eis que não deliberar é o mesmo que “deliberar não deliberar” e jogar o jogo fingido da limitação à mera “prévia escolha” como apontado acima – o leviano pela opção de ser leviano – que nada mais é que a clássica questão de trocar “essência” por “aparência”.

Toda nossa liberdade ou livre renúncia dela está nesse quadrante.

Quem nada quer, ao cabo, quer não ser, pois é só o QUERER, no sentido preciso do termo, que nos constitui. A mística cristã e o aristotelismo se aproximam exatamente na valorização do homem de boa vontade, aquele que decide e toma iniciativa.

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É óbvio que existem desejos e prévias escolhas bons, sem que sejam de “baixo ventre”, ou são ao menos “inocentes”, em termos objetivos e cuja espontaneidade em adesão não deixa rastro doloroso, injusto, maldoso, etc …

É possível que o ardor de um homem por uma dada mulher seja exclusivamente pela beleza dela e que por esse ardor ele a siga e que calhe dessa mulher ter excelente caráter! Possível sim, apesar da raridade.

Eventualmente também, a fruta mais gostosa do cesto pode ser jutamente a mais nutritiva. Uma opinião, um certo “achismo”, um idiossincracia qualquer, por suas vezes, podem coincidir com o verdadeiro.

Quanta alegria há quando convergem o meramente “desejado” e elaboradamente “querido”! É daquelas coisas que “até” ocorrem de vez em quando.

O “acerto” contudo entre uma escolha meramente passional/hipnótica pode ser mero “acerto factual, de circunstância prática”, mas não tem efeito constitutivo qualquer, sendo só “acaso”.

Não advogamos proibição, secura, supressão ou castração da dimensão desejante, como uma eventual via estóica!

O busílis deste artigo é evocar a dimensão deliberativa, da tomada de decisão por vontade, meio normalmente e tantas vezes “dolorido-forçado” de imediato (já que tente a ser anti-desejante e demolidor de “idiossincracias”, fontes, ambas, de prazer imediatista), mas que outorga felicidade no decurso do tempo.

Diante de ardor por algo ou alguém que se saiba tóxico, nocivo, perverso, etc …, MUITA FORÇA de vontade, pontual e dirigida tem que ser feita. Uma mão busca a maçã envenenada e outra há de frear/recolher/bater a tal mão. Essa intra-adversidade dói.

A mão da vontade decorrente do pensamento lúcido só tem chances razoáveis de ganhar da mão sob paixão ou sob subterfúgio narrativo se se cuidar uma mão tonificada cronica e sistematicamente e não para o mero caso concreto!

Demover alguém de um impulso afetivo nocivo apenas com argumento é altamente ineficaz, salvo se esse alguém já tem um caráter resolutivo cunhado ao longo do tempo em buscar deliberações lúcidas para a generalidade das coisas da vida dele.

É o caso do camarada que já aprendeu a desfazer vínculos, fez exame vocacional, faz exames de consciência, tem racionalidade no consumo e com dinheiro, toma iniciativas em diversos aspectos da vida, etc …, ou seja, um caráter forte (por resolutividade) é que é forte, não havendo pessoas “fortes de ocasião”.

É importante atenção a que um caráter cultivado na racionalidade deliberativa não só outorga tônus para o autocontrole anti-desejante, mas, mais e melhor ainda, ela faz inclusive que a dimensão desejante/sugestiva se esvaia!

Naturalmente, uma pessoa resolutiva deseja/sugere-se sucessivamente menos e, pois, menos vezes terá que se confrontar em luta interior para neutralizar impulsos meramente materiais.

A aplicação da razão, nessas situações, terá menos conotação de “ato forçado”, dando espaço a um senso de harmonia e uma nova forma de prazer de se autocontrolar/dirigir quanto aos afetos.

Quem quer mais deseja menos. Quem nada ou pouco quer, deseja muito, ilimitada e até contraditoriamente. Nutre-se a virtude e diminui a necessidade de combate do vício. O consumismo é apenas um exemplo banal disso.

Se a resolutividade se dá frequentemente, passa-se como se, em termos biológicos, a homeostase subisse ou se, em termos alquímicos, a sublimação aumentasse.

O foco: a inteligência, particularmente a de fim deliberativo, é NECESSIDADE VITAL HUMANA, tal que nós até nos constituímos (fazemo-nos nascer) tanto quanto mais deliberações efetivas tomamos.

Vida propriamente humana, porque espiritual, pede a profundidade deliberativa, própria da categoria da ação, que é a mesma da liberdade. Fora disso, poderá parecer humana, mas será ou servil ou mesmo bestial, mas é opção moral em todo caso.

A reprodução do texto é livre, devendo ser citada a fonte e preservada a unidade do pensamento.

Vicente do Prado Tolezano é graduado em direito peça PUC/SP e Mestre em Filosofia pela Faculdade do Mosteiro de São Bento de São Paulo, com investigação sobre a Metafísica de Aristóteles. É diretor da Casa da Crítica e da Tolezano Advogados.

Tem formações complementares diversas na área da Gestão, Psicanálise, Mediação, Filosofia Clinica, Lógica e Argumentação e outras sobre a Alma Humana.

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