019 – Lei dos Corpos/Consumo, do Amor/Consumação – Feiras e Boutique
Autor: Vicente do Prado Tolezano 22-09-2017
A divisão entre matéria e forma foi alcançada pelo gênio humano já nos tempos da Antiguidade, tanto no Ocidente quanto no Oriente e dentro do contexto de esforço de solução de uma tensão intelectual maior que é dar cabo do problema da coexistência do finito e infinito.
Nesta banda ocidental do mundo, o debate antigo sobre a matéria e forma e que até hoje ilumina o tema se deu entre Platão, com sua conhecida teoria das formas puras transcendentais, e Aristóteles, que lhe objetava com a teoria do ser imanente.
Para o foco deste artigo, vale atentar que para o homem a forma corresponde à nossa ALMA e matéria, evidentemente, ao nosso CORPO.
O corpo é finito (ou, noutras palavras, corruptível), é obviedade, já a alma é infinita, como imortal, isso é defendido explicitamente desde a cultura egípcia. Para nós ocidentais, conhecer a defesa da imortalidade da alma protagonizada por Sócrates, no diálogo Fédon de Platão, é de rigor e tem a função de ser como que um dos indispensáveis primeiros degraus da escada de domínio metafísico.
O corpo humano material, obviamente e como não poderia ser diferente, se sujeita às leis da matéria tal como qualquer outro corpo físico.
A lei mais universal da matéria é a LEI DA INÉRCIA, tal que uma vez posta, por uma causa eficiente, a coisa física-material em movimento este segue por si inercialmente e no ritmo dado. Atenção que movimento não quer dizer meramente movimento espacial. Integra o senso de movimento a geração/corrupção, as alterações quanti/qualitativas e a transformação.
Uma vez concebidos, seguimos inercialmente nosso movimento pelo mundo e sob os impactos (afetos) dos demais agentes eficientes externos tal como bolas de bilhar que batem umas nas outras. Diante da imagem do leão ou da pessoa linda, Reagimos – ou, ao menos, tendemos a reagir – inercialmente segundo um padrão de aproximação ou afastamento. Nos corpos vivos, a INÉRCIA se chama INSTINTO (desejos e paixões também bebem da INÉRCIA com canecas grandes).
A 2ª lei mais universal da matéria e que, a rigor, é mera derivação da lei da inércia, é a LEI DA PRESERVAÇÃO DA MATÉRIA. Ou seja, matéria, em si, quer se preservar, passe por quais transformações passar. É um princípio de esforço, mas que sempre será vencido, pois é próprio da matéria se corromper/dissolver.
Coisas materiais são e são finitas, sem exceções. O principio é que toda matéria é, num sentido, caótica e que, pois, toda estabilidade (forma) que logre seja transitoriamente. A preservação da matéria não é que ela não mude de incorporação de forma, mas que justamente ela não para de mudar, tal que nunca vira forma pura (estável sempre), ficando sempre matéria instável.
Platão conjecturava o problema finito e infinito com exemplos do tipo: que o cavalo, qualquer cavalo, em particular morre, mas cavalos não morrem. O “cavalo-em-si” e que Aristóteles iria chamar de “cavalice”, essa – forma – perene, tal que os cavalos vão, mas a cavalice fica. A mesma questão posta, contudo, para o ser individual é que o corpo vai e a alma fica.
O que é relevante destacar sobre a matéria é que toda sua lógica é de ESCASSEZ/TRANSITORIDADE/LIMITES. O seu esforço de preservação, aos homens, é a sensação de MEDO (manancial do espírito de defesa, ego, etc.). Sua síntese semântica está contida na noção de “CONSUMO” (de sumir “com”).
Nosso foco neste artigo não é arguir a imortalidade da alma, mas, assumida a imortalidade, arguir o imbricamento umbilical com o AMOR, sendo este a “antecipação” da imortalidade.
A LEI DA INICIATIVA (ou VONTADE ou, ainda, DECISÃO) é, como se diz, a única que pode INICIAR, acelerar, refrear, abafar ou dirigir a INÉRCIA material. A vontade, pois, é AGENTE ou ATIVA e não REAGENTE nem REATIVA.
A rigor, a única força que pode existir no homem é a vontade. A expressão comum “força de vontade” é pleonasmo.
A seu turno, os termos vontade e amor são bastante polívocos e em várias acepções combinam-se entre si em relação de igualdade e, nas acepções em que não se combinam como iguais, são parecidos semanticamente como irmãos-gêmeos. Ou seja, por transitividade, força é amor e amor é força.
A vontade (amor/decisão) está no domínio da ALMA e não da MATÉRIA, tal é óbvio. Do contrário, seríamos coisas e, por igual, não haveria tanta diferença entre os próprios homens – que são justamente as diferenças de espírito ou de consciência.
Reconhecer a força na vontade também é uma obviedade, pois é ela e só ela que subjuga a matéria. A fortiori, pois, o máximo da força está no amor, já que este é a maior convocação que a vontade pode receber.
Imagina o adolescente altamente DESEJANTE (paixão) por um tênis. Até o corpo dele treme com a imaginação e ante a não realização do desejo. Passa a ter medo de rejeição, medo de estima, medo de inexistir mais tênis, etc…
Numa dada hora, o DESEJO pode ser satisfeito. Que alegria que ele sente! Mas dura só uns minutos e aí ele fica com tédio da coisa, a rejeita e busca outra e assim, sucessivamente. É tal da erraticidade da matéria e seu esforço para autopreservação como matéria. Ao cabo, o nosso não apenas consome o tênis, ele CONSOME A SI, no sentido mínimo de que não “salta” para algo melhor, sumindo-se em si.
Se ele tiver, contudo, VONTADE – força – para não comprar o tênis, mesmo que tenha o dinheiro, mas logre CONTROLAR a paixão desejante e, pois, fique com o capital para alocar em algo melhor, há chances de que este algo adquirido por FORÇA DE VONTADE não seja, a priori, algo que vá lhe gerar tédio, ao menos logo. Como se diz em termos populares, se não tem esforço não se dá valor.
Uma característica da CONSUMAÇÃO da VONTADE – e das coisas espirituais em geral – é que uma vez alcançado um patamar, a outro, mais alto se tende. A regra das coisas da ALMA não é a PRESERVAÇÃO, mas a EXPANSÃO. Sim, deve ter observado que matéria e alma são antagônicas em suas lógicas…
O moço do nosso último exemplo tende a expandir sua força e, pois, as possibilidades gerais da vida dele, desde conseguir subir os muitos degraus do crescimento em que não só se seleciona e mantêm o capital “não consumido”, mas o frutifica, ou, seja “CONSUMA” O SEU SER em um patamar mais alto. Que alegria tem o plantador ao ver o fruto e o fruto do fruto e por aí vai.
Atenção morfológica: CON-SUMAR, ficar com, dar ou fazer a SUMA, a essência.
Se esse processo for bom e chegar ao seu ápice, será o caso da pessoa conseguir AMAR, ou seja, gozar do máximo de espiritualidade neste mundo material, o máximo possível de antecipação da infinitude nesta vida.
Se tiveres dúvida, dirima a questão pela própria sensação corpórea: a matéria tem como emoção primária o MEDO e a alma, ao oposto, o MARAVILHAMENTO.
É comum o erro de associar o oposto do MEDO à CORAGEM, mas não é o caso. A CORAGEM é o oposto da COVARDIA, ambas atitudes humanas, mas não emoções no sentido próprio, como são MEDO e MARAVILHAMENTO.
Recorda tu, leitor, de momentos em que vivestes ambas as sensações e expressa, com sinceridade, os contrastes dos efeitos de contração ou expansão e bem como a sua própria percepção do TEMPO sob os distintos estados.
Vide quem tem mais “eternidade antecipada”, se o acumulador (egoísta/indeciso) ou se o doador (altruísta/decidido). As evidências são evidentes, com o perdão do trocadilho.
O AMOR, por ser o cume das coisas da alma, tende ao cume da lógica da ABUNDÂNCIA/ESTABILIDADE/EXPANSÃO, ou seja, o oposto das coisas da matéria e até porque ele se realiza tanto mais quanto menos materialidade nos permitimos.
O consumador enriquece na medida em que ama e o consumidor empobrece na medida em que se consome.
Veja exemplo do “mercado do amor de par”. Conhece gente que atrai outras pessoas por sua “ESCASSEZ” (perfil furtivo, evasivo, até de desprezo, como lógica de oferta e procura). Isso é altamente eficaz para seres materializados, regidos pela mesma lógica que o consumo das coisas, coerente em: mais matéria mais “coisa”.
Em uma relação dessas, quem mostra decisão pelo outro fica até em situação pior em relação a quem dá desprezo. Quem dá decisão reforça o MEDO no outro, já que, lembre-se, o materializado quer preservar a matéria e, logo, foge de decisão, ou seja, de coisa da alma. Pode até acontecer um cenário necrófilo de quem dá AMOR padecer do MEDO de dar amor ao outro e aí segue um ciclo pernicioso.
Se a relação no “mercado de amor de par”, contudo, for entre seres pouco materializados (mais espiritualizados, pois), a lógica é absolutamente a inversa: o valor cambial está justamente na ABUNDÂNCIA de tomada de decisão positiva e num esquema em que a FIRMEZA de um evoca e provoca a firmeza do outro, desprezado, nesse ambiente o “hesitante eterno”. A lógica neste caso é tal que, quanto mais decisão um provê, a moeda de troca há de ser também decisão, mas em um esquema em que 1 decisão + 1 decisão são mais do que apenas 2 decisões, ou seja, é o efeito de multiplicação mais que o de soma. O razoável nesses casos seria que, quem não decide (não tem iniciativa, nem amor, nem vontade) precisasse achar uma feira de corpos para se vender, mas não insistir na boutique de almas.
É muito fácil achar essas feiras de corpos. Algumas delas são apelidadas de BALADAS – simples assim. A boutique de almas, a seu turno, já é coisa mais escassa neste mundo consumista… Vamos à feira ou boutique?
A reprodução do texto é livre, devendo ser citada a fonte e preservada a unidade do pensamento.
Vicente do Prado Tolezano é graduado em direito peça PUC/SP e Mestre em Filosofia pela Faculdade do Mosteiro de São Bento de São Paulo, com investigação sobre a Metafísica de Aristóteles. É diretor da Casa da Crítica e da Tolezano Advogados.
Tem formações complementares diversas na área da Gestão, Psicanálise, Mediação, Filosofia Clinica, Lógica e Argumentação e outras sobre a Alma Humana.
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