Já eram avançadas as horas da noite daquele sábado de muito calor na cidade de São Paulo.
O Dr. Rolézio fruía do seu mais que justo dolce far niente doméstico; trajava só bermudas e estirado estava na cama movimentando-se apenas no bocejar do pré sono.
O telefone, contudo, deu de berrar. Quem seria naquela hora? Fosse quem fosse, haveria de ser grave.
– Alô, responde o Rolézio com tom investigativo.
– Dr. Rolézio, a coisa é grave, muuuito grave; é o Tony que está falando. Me conta se existe juiz de plantão no fórum agora.
Tony era empresário de razoável expressão econômica em São Paulo. Homem de labuta, pró-ativo, cuidador desenvolto das coisas próprias, ao menos na impressão. Já estava na senioridade dos 60. Sua empresa era cliente habitual da Rolézio Advogados, num relacionamento de vários anos.
Na Rolézio Advogados, a regra de disponibilidade era claríssima: o cliente deve ser atendido em qualquer hora ou circunstância; óbvio, contudo, que o dever de atender excepcionalidades decorre da emergência também de excepcionalidades efetivas.
– Tony, o que está acontecendo?
– É uma tragédia! Dr., é uma tragédia. Precisamos ir agora para o fórum.
– Peraí, Tony. Toma um ar e vamos por partes. Tem juiz no fórum agora sim, mas preciso saber o que está acontecendo.
– O caso é grave. Vamos para o fórum e te conto. Onde que fica o juiz?
– Tony, preciso saber e.x.a.t.a.m.e.n.t.e. o que está acontecendo para fixar um rumo.
– Foi a vagabunda da Leonor que arrumou mais essa. O cara passou lá e levou a Tatiana!!!!! Sabe lá onde eles estão agora?? Precisamos ir pro fórum já.
– Vai por partes aí, meu. Quem é Leonor e quem é a Tatiana?
– A Leonor é minha ex mulher e a Tatiana é minha filha com ela; mora com a mãe, que é uma largada; ô mulher zuada, zuada de tudo! A Tatiana arrumou um namoradinho, que foi lá e pegou ela para sair. Eles devem estar transando, tenho certeza! Temos que fazer alguma coisa já! Ai se eu pego esse cara!!!!! Depois, eu bato na Leonor, mas agora temos que agir agora.
Os gritos de aflição, em tônica de desespero errático, impregnados de dores superlativas e profundas, dum homem de carne e osso diante da sensação de vilipêndio iminente ou até já em consumação sobre a cria sensibilizaram o Rolézio. Aliás, ele sempre deu acurada atenção à perspectiva masculinista.
O Rolézio encheu pulmões de ar, centrou-se e deu tom de compreensão piedosa ao Tony aflito.
– Olha, Tony, essas coisas são bem sensíveis e graves sim, mas não é exatamente um problema para um juiz tratar. É uma coisa meio de família e que se pode até chamar um médico para orientar, dar alguma ajuda, mas, em princípio, não tem a ver com justiça.
– Temos que fazer algo urgente.
– Você já ligou no celular dela?
– Ela não está atendendo. Eles tão transando, cara!!!!!! Tenho certeza!
– Quantos anos tem a Tatiana?
– Ela fez 24 na semana passada.
– O que? 24 anos!!! A tua filha tem 24 anos e você tá querendo que um juiz vá proibir ela de transar com o namorado, é isso mesmo?
– Eu ainda vou pegar esse cara! Temos que ir para o fórum já.
– Olha, Tony, por conta de muito respeito que eu tenho por ti, eu não te mando à merda. Até entendo teu incômodo, mas daí a perder a cabeça é outra coisa. Vou simplesmente desligar e retomar a vida. Você precisa relaxar e aceitar as coisas. Você que tem que educar sua filha a ter senso de responsabilidade e rumo da vida dela, mas nessa altura nem é mais assunto teu.
– Ela fica do lado da mãe dela, a aquela zuada. Já devem tá transando, eu tenho certeza que sim!
– Tony, boa noite! – fechou o Rolézio com secura mas sem exaltação pondo fim ao que não tinha que ter tido começo.
Passado um punhado de dias, chega à Rolézio Advogados telegrama com notícia de que a empresa do Tony rescindia contrato com o escritório. Tudo por causa de uma noitada de sábado de calor.
São Paulo, 10/09/20. O Autor.
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