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CONSONÂNCIA E DISSONÂNCIA COGNITIVAS

Artigo do Vicente do Prado Tolezano. 

Ao menos desde Platão (428 – 348 a.C.) já se assenta que a alma humana, distinta da animal, é naturalmente “partida”, particularmente “tripartida” para esse gigante do pensamento. Ademais, assenta-se também que será a harmonia entre essas três partes o que outorga, mais que mera inteligência, a própria SANIDADE psíquica.

Há uma parte que PERCEBE os dados da realidade, sejam eles objetos externos, sejam eles estados interiores nossos. Ao perceber, por exemplo, um cão raivoso, também percebo o afeto de medo em mim. Essa parte pode até “exclamar”, mas não dirige a “fala”.

Outra parte da alma é a parte INTELECTIVA, a que opera com concepção de conceitos/ideias de caráter abstrato. Essa parte “entende” nexos causais entre as coisas, faz raciocínios, hierarquiza valores, põe coisas em perspectivas de proporções, etc… Também é a parte intelectiva a que articula a nossa linguagem, para além da mera exclamação.

A outra parte da nossa alma é a VOLITIVA, a que se incumbe da VONTADE humana, que é nosso “PRINCÍPIO DE AÇÃO”. Essa é a mais íntima parte de nossa alma e é, a rigor, a que mais define nossa essência.

Não se confunda a vontade com o “mero desejo” (forma de paixão). Nossos desejos hão de ser “percebidos” e não são propriamente “deliberados”. Aliás, comumente a vontade é exatamente uma gestão, supressão ou modulação dos tais desejos percebidos, pois, em sentido bruto, eles são “dissonantes”.

Exemplificamos: se há 10 mulheres lindas e disponíveis e um homem num mesmo ambiente, é provável que ele “deseje” (reação) as tais 10 mulheres ou, ao menos, várias delas. Logo, ele não “quer” nenhuma. O tal homem terá “vontade” (ação) se quiser uma das 10 mulheres ou nenhuma delas, independentemente de quantas ele “meramente desejar” (reação).

Em suma: muito antes de Freud, já se sabia da “irracionalidade” dos desejos (que o psicanalista atribui ao inconsciente), sendo a vontade a força humana contra o caos desejante (que o psicanalista atribui à consciência).

Animais só têm a parte perceptiva e, claro, os demais aparatos instintivos para sobreviver. Até porque não “unitários” não mentem e nem tem como se dissociar (dissonar).

À harmonização da tripartição, também se dão os nomes de “associação”, “integração”, “consonância”, “tonificação”, “integridade” ou “autenticidade”.

Como termos opostos ao dito senso de estado integração se usam as expressões “desintegração”, “desunião”, “inautenticidade” ou “DISSONÂNCIA COGNITIVA”, assumido que as 3 partes da alma são “cognições” (e o são em sentido amplo).

Por vezes, se usa o termo dissonância cognitiva para indicar não apenas o estado de dissociado, mas o ato de manipulação externa para alguém dissocie as suas faculdades de perceber, pensar e querer.

Meios ordinários da dissonância cognitiva: a) mentira; b) incoerência; c) sabotagem. 

Se há uma maçã à frente, mas a pessoa diz que há uma pera ou que nada há está mentindo, praticando a mais clássica forma de desintegração pessoal. Pode-se mentir para terceiros e para si sobre o que se percebe do exterior, sobre o afeto que sente, sobre o pensamento que se tem e sobre a vontade própria.

A incoerência e a sabotagem são, por sua vez, filhas da mãe mentira e sempre carregam o DNA desta. Veja exemplos absolutamente corriqueiros:

  1. a pessoa declara que comer glúten faz mal à saúde, mas não hesita em comer pizza, coxinha, pão, etc… Isso é incoerência dissonante, por “inocente” que pareça;
  2. a pessoa declara que a ama seu trabalho, seu chefe, sua equipe, que lá é a realização da vida, mas volta para casa todo dia em tédio crescente porque, em efeito, odeia o que faz. A questão é a mesma com respeito à pessoa que reclama, reclama e reclama do trabalho, do relacionamento ou de um vínculo qualquer mas apega-se a ele com unhas e dentes anos e anos a fio. São autossabotagens mais comuns que peixes no mar, igualmente dissonantes.

Vista com um mínimo de forma adulta e objetividade, toda dissonância é RIDÍCULA e cômica, aliás, tragicômica. Via de regra, a humanidade é “ridiculamente fraca”. Honoré de Balzac (1799 – 1850), denunciante ácido e incansável das dissonâncias cognitivas sem fim, deu com justiça o nome de A COMÉDIA HUMANA ao conjunto de suas obras.

De cada ato de dissonância cognitiva que emerge, a fraqueza das dimensões psíquicas fundamentais do caráter vai crescente. Ou seja, a autoestima e o senso de potência enfraquecem e podem ir ao ponto de colapso psíquico.

Ainda que não se aperceba de plano, quanto mais dissociado alguém é, pior a apreciação que faz de si, por mais que se dissimule (dissimulações já são, em si, dissonância) e de menos energia ativa se goza para que as “vontades” vençam desejos, pelo que o senso de “impotência” vai se instalando passo a passo.

Também não duvide que o fundo do poço dos dissociados é “loucura feia de ver e muito pior de viver” – coisa de dor moral (carência, angústia, desespero, colapso, apatia, etc… e crescentes até que a veracidade, a coerência e a fidelidade a si se restaurem).

A praça pública (sociedade política) sempre carregará muita dissonância cognitiva idiotizante das pessoas. Não há sociedade política sem que as massas aplaudam a “roupa nova do rei” que está nu, conforme o clássico conto de fadas de Hans Christian Andersen. Não há, igualmente, sociedade política sem traços razoáveis da caverna de Platão, das Matrixes e das distopias de Huxley.

O foco deste artigo, contudo, é o “varejo” das relações interpessoais em geral e não o “atacado” da sociedade política.

Como os vulneráveis (os dissociados) são muitos, há sempre fartura de presas para os caçadores. O encontro humano entre caçador e presa se chama relação de poder (sem nexo direto no sentido acima de “poder político”), o qual, por pouco intuitivo que pareça, se funda na “fraqueza da presa” e não na “força do caçador”.

A despeito de ser “canalhice” sim, é deveras fácil dissociar as pessoas. Só quem nutre um constante zelo lúcido e ativo pela sua integridade, veracidade, autenticidade, coerência, etc… pode resistir aos ataques de dissonância cognitiva. Sem tais qualidades, o caso é de “incautos” frente a sempre perigosos “encontros humanos”.

Vejamos exemplos do cotidiano de “ataques por meio da dissonância cognitiva”, geradora de mais dissonância cognitiva e idiotização dos passivos a ela.

 

Exemplo 01: a Sedução!

A antiquíssima “arte” da sedução consiste em atiçar desejos, expectativas e fantasias no seduzido, desejos que o sedutor já sabe de antemão que não vai satisfazer. Sedução é íntima da dimensão sexual, mas não é restrita a ela.

Ela instabiliza as capacidades de percepção e julgamento da vítima, sujeitas à oscilação ou ambiguidade de afetos ora de ternura, ora de desprezo, ora presentes, ora ausentes, etc…

Desde os Mitos Clássicos da Esfinge e do Canto das Sereias já se advertem dos efeitos de INSANIDADE por dissonância cognitiva da sedução.

Quanto mais exausto, insano afetiva e mentalmente fica o seduzido, mais prostrado e cativo tende a ficar perante o sedutor, até que seja “descartado” por este quando já estiver como um zumbi idiotizado, hora do gozo-mor do sedutor.

O processo de sucumbência do seduzido é o processo de dissonância cognitiva sucessiva, tal que a percepção, entendimento e vontade já “peleiam entre si”, dificultando de ver o óbvio de que a fantasia é só fantasia perversa mesmo e que o próprio seduzido passou a mentir para si, a ficar incoerente consigo e a se autossabotar para “ajudar o sedutor lhe vampirizar” passinho a passinho.

Vamos deixar uma dica de leitura de opúsculo muito singelo e sucinto, mas lúcido para demonstrar o esquema da sedução: A Esfinge Sem Segredo, de Oscar Wilde, esse grande especialista sobre a “Arte da Sedução”.

 

Exemplo 02: Assédios Organizacionais

Até existem, mas são poucas as hierarquias organizacionais que não sejam encontros porcamente mediados entre caçadores e presas humanas!

Abordamos aqui, em particular pela experiência direta deste articulista, o dito “mundo corporativo”, o qual, a rigor, deveria ser chamado de “inferno corporativo” mesmo.

Via de regra de poucas exceções, os únicos passaportes de trânsito nesse “inferno” são bajulação (elogios totalmente insinceros), ataque passivo agressivo (censuras hipócritas), ambiguidade afetiva (geradora de exasperação) e incoerências diversas entre muitas formas de assédio.

Em artigos e vídeos já publicados no nosso site (casadacritica.com.br) e futuros são pormenorizados vários desses esquemas dissociantes. Neste artigo, o foco será no “pináculo” da dissociação corporativa: o Workaholic.

O Workaholic é, a rigor, um dissociado que já há muito está sendo assediado e já desceu muito no poço feito da dissonância cognitiva e, comumente, é também um dissociante de quem está abaixo dele hierarquicamente. Comumente, ele é a força motriz dos “passaportes” antes aludidos.

O Workaholic passa a considerar a “corporação”, chefes, hierarquia, mercado, etc… como as “réguas da verdade” e “monopólio da bondade”. A ele, vida e carreira são sinônimos entre si.

Por paradoxal que pareça na superfície, ele é altamente improdutivo. Deixa de produzir (sua integridade, a integridade alheia, afetos efetivos, amorosidade, cognição amadurecida, etc…) porque tem que trabalhar compulsivamente. Isso é, sim, autossabotagem de caráter servil, por mais fantasiosamente dissimulada que seja. A rigor, ele não “quer” isso, no sentido de ter “vontade”. Ele só tem “desejo” mesmo, muito desejo, no sentido exato em que “muito desejo é pouquíssima razão e é a chave de cativeiro”.

A incoerência dele é que vive para trabalhar e não trabalha para viver. As mentiras dele são múltiplas por esquemas de “romantização” entre “ele” e a “empresa” como se fossem 2 metades recíprocas únicas de uma maçã que, contudo, não existe. Tal como o seduzido, será descartado oportunamente e com a “mente perturbada”.

Bela peça da nossa literatura que aponta esse tipo de problema é o conto Hoje, Seu Ferreira não Trabalha, de Orígenes Lessa, autor do clássico O Feijão e o Sonho.

 

Exemplo 03: Gaslighting

Gaslighting é um nome novo para canalhice mais antiga que a descoberta da roda: a subversão da culpa.

Imagina uma situação de infidelidade flagrada, mas em que infiel culpe exatamente a vítima, dizendo horrores mil num esquema dissonante da percepção dos fatos, da deturpação das ideias, dos sensos de proporção, dos nexos de causa, etc…, tudo para que a uma alma incauta e débil se sinta culpada.

Os já dissociados ou carentes caem sim no jogo e ficam questionam mais a SI que a situação. Tantas e tantas vezes, deixam de acreditar nas suas memórias, na sua capacidade própria de entendimento, etc… No ápice, após os degastes duros da dissociação, chegam a até pedir desculpas enfáticas ao ofensor! Nessa altura, já está “sucumbido” e também será descartado com a “mente perturbada”.

Os infiéis, os estelionatários, os narcisistas, os chefes tóxicos, entre as múltiplas espécies de “perversos em geral” fazem uso largo do gaslighting. Os desintegrados caem no jogo e idiotizam-se.

Em resumo:

  1. onde há poder, ou seja, em quase todo lugar, há ataque de dissonância cognitiva alheia;
  2. a única defesa contra ela é zelar ativamente, muito e sempre, como um auto compromisso para consigo, pela harmonia das 3 partes da alma não mentindo sobre o que se percebe, em si e fora de si, sobre o que se pensa e sobre o que se quer, não sendo incoerente entre pensamento e ação e sabotando a vontade;
  3. um pouco só que se esteja dissonante cognitivamente é suficiente para atrair um caçador que vai catalisar muitas vezes mais essa dissonância.

5 comentários

  1. Nayonara disse:

    Muito bom, professor!
    Agradecemos por compartilhar

  2. Milena Santos disse:

    Perfeito artigo, a dissonância cognitiva anda junto com o declínio cognitivo?, pois vemos uma insanidade geral, Tudo tende e praticamente nos força a idiotização e ou a dissociação, pois até o pensar é censurado ( como bem descreveu Orwell em 1984.)
    Está cada vez mais difícil se manter são pois estamos vendo e convivendo com o ambíguo com a dissociação e a insanidade mas se “ousamos” dizer o que nossos olhos estão vendo somos censurados, hostilizados, desprezados etc.

  3. Fernanda disse:

    Excelente texto!

  4. Ana Amoroso disse:

    Interessante, parabéns pela reflexão!

  5. valeria sousa disse:

    mais um excelente texto!! seus textos ,Vicente , tem me ajudado muito em questão da maturação. Irei guardar seus textos ,pois são relíquias.

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