Artigo do Vicente do Prado Tolezano.
Cancelamento, a popular lacração, é uma forma de segregação social forçada. Fala-se muito sobre isso atualmente porque são frequentes os casos de cancelamento e há até a impressão de que cancelar estivesse na “moda”.
Rigorosamente, é falso afirmar o mero modismo do cancelamento, pois é uma constante social tão remota e longeva quanto a própria humanidade.
As únicas novidades atuais nisso são o nome empregado e a maneira de banir. Antigamente, essa mesma prática se chamava “ostracismo” ou “exílio” e gozava até de status de instituto jurídico. O banimento era físico e hoje é virtual.
Na obra “Política”, Aristóteles (384-322 a.C.) conta de várias polis com regras para manterem afastados homens proeminentes em mérito. Ele explica que esses homens muito meritosos, por vezes, eram chamados de “homens deuses”, num esquema em que “conseguiam legislar sobre si”, bela forma de referir a que tinham, pois, a “capacidade de liberdade”.
Essa poda de liberdade seria uma forma de “justiça política”, adicional às formas de “justiça criminal”, a qual, ao reverso, segrega, a seu modo, aqueles que são demasiadamente viciados, erráticos ou perversos.
Fica claro que certa “paz social ou coletiva” demanda uma “tutela da mediania ou da mediocridade”, variando os termos se variam os vieses de valoração positiva ou negativa quanto às castrações dos melhores da sociedade.
Os argumentos favoráveis ao ostracismo sugerem que quando se permite que um ou poucos homens se destaquem muito desproporcionalmente (em virtude, em riqueza, em popularidade, em força, etc…), ainda que não incursos em crime, há violação de um senso de igualdade e surge desconfiança contra os tais notáveis que poderiam exercer muita influência ou concentrar poder político mesmo.
É a clássica questão do puro “medo do outro”, mormente do “outro que seja forte”.
Sobre ela, vale sempre relembrar do asserto do filósofo francês Louis Lavelle (18883-1951): “[…] (o outro) anuncia-nos ele a paz ou a guerra? Vem invadir o espaço onde agimos, reduzir os limites da nossa experiência e nos expulsar para se estabelecer no domínio que ocupamos?”.
Havia também entre os gregos clássicos uma modalidade menor de ostracismo denominada “atimia”, a qual consistia num “exílio interno”, de maneira que o supostamente forte não precisava sair da cidade desde que não mais participasse da vida política, assembleias, sem votar, sem ser ouvido, etc.
A rigor, a atimia é o alter ego do cancelamento virtual moderno.
Aristóteles refutava toda legitimidade ao ostracismo e até ao ponto de afirmar que o natural seria mesmo não banir os melhores e nem os submeter à autoridade, mas que, ao reverso, o desejável é que justamente eles é que mandassem, como um senso de autoridade/lideranças naturalmente despontadas.
É óbvio que o que exatamente é “ser melhor” – mais meritoso, inteligente, rico, forte, popular, etc. -, comporta ampla investigação que não é o busílis deste artigo.
Ademais ao refutar o ostracismo, Aristóteles indicava a degeneração do seu manejo como simples meio perverso, subterfugioso, de perseguição política e pelo qual a “situação” anulava a “oposição” sob uma fachada de “bom mocismo”.
Dar razoável harmonia social entre as qualidades individuais mais raras como a liberdade efetiva, circunspecta e os vícios mais ordinários como dispersão em medo e busca afetiva de pertença/conformidade, sem resvalar em perversão disfarçada é a grande questão da arte política cujas soluções são sempre precárias.
Pode-se dar um exemplo simplório de cepa escolar e que certamente o leitor já testemunhou ou mesmo viveu.
É comum que nas salas de aulas existam alguns “estudantes” mais ou menos isolados e que são efetivamente interessados em aprender e até em se tornar autodidatas. Isso incomoda muito a massa de “alunos” dispersos sem qualquer foco na sua progressão.
A tendência é que a tal “massa de alunos” não só não almeje a estatura dos “estudantes”, normalmente chamados pejorativamente de “nerds”, mas, ao reverso, sufoque-os, desdenhe deles ou até coisa pior.
A seu modo, pois, e guardadas as proporções os “nerds” serão “dessocializados” (ostracizados) ou terão que que “se diminuir para caber” no esquema da massa meramente aluna.
Esse exemplo escolar do nerd pode ser perfeitamente vivido por ele também dentro da sua família. Lá, talvez seu apelido de ridicularização sutilmente excludente seja “ovelha negra”, “patinho feio”, “Caxias” e coisas assim.
São raríssimas as instituições escolares e, mesmo famílias, que saibam fazer com que nerds e não-nerds sigam seus fluxos em paz e sem o clássico nivelamento por baixo, que, no limite, são os efeitos de todo cancelamento.
O bem metafísico da liberdade do “outro” implica alguma reação canceladora de algum modo. Novamente, invocamos Lavelle noutro asserto de brilho: “o menor progresso espiritual nos retira o apoio dos outros homens, que veem em nós um ser que começa a se bastar”.
Entre a “retirada de apoio” aludida pelo pensador francês e a prática do cancelamento a distância será mínima (e se é que há distância!).
Por mais que dissimulem sob falácias do “bom mocismo” – e fazem isso, sim -, são poucos os que não temem ou até odeiam (afeto que nunca é bom) quem não lhes confirma em crenças ou ilusões, estilos ou simplórias preferências.
Quase todos nós somos pidões nervosos por bajulações, mesmo sabidamente insinceras, e por medo, sim, da nossa sombra, o qual é transferido defensiva e psiquicamente em medo de não aceitação (que pode ser só imaginária) e rancor/orgulho contra o “outro” que pode ser cancelado se não prover as tais bajulações.
Cancelam-se os nerds ou qualquer outro (nerd ou não) que não brada o mantra “te confirmo, te confirmo, te confirmo, etc…”, seja por verbos, gestos ou cliques.
As legislações atuais não contemplam o ostracismo e proclamam até seus opostos como liberdade de expressão, liberdade de credo, vedação à censura, pluralismo político entre outros, mas, não têm eficácia nem sequer nos regimes declarados democráticos.
Censura, controle de mídia, até decisão judicial proibitiva de postagem em rede social, incentivo a cultura do politicamente correto, desdém, ridicularização, segregação social forçada entre outras são as novas roupas sobre os velhos conceitos de ostracismo ou de atimia.
O exílio contemporâneo é virtual, eis que, de certo modo, a vida passou a ser virtual e as redes sociais são o “novo mundo” no qual os “cancelados” não devem ser vistos para que assim os lacradores pseudamente sintam-se bem e confortáveis.
Mesmo que mudem as leis jurídicas, a natureza animal-humana majoritária, medrosa e agressiva não muda em nada.
Este articulista exerceu a advocacia contenciosa por 25 anos. Acusou pessoas de crime. Obteve declarações de falências. Entre outras medidas de força, executou dívidas, tomou bens, despejou pessoas, retirou menores dos pais. Em razão disso tudo, recebeu 6 ameaças de morte.
Por sua vez, em 4 anos de direção da Casa da Crítica, publicou opiniões diversas em artigos como este, posts e vídeos em redes sociais sobre Política, Filosofia, modos de ser, valores ideais e outros. Já acumula mais de vinte ameaças de morte, entre outras hostilizações. O número de “curtidas” cresce diariamente, mas o número de haters, de “anulações”, ofensas, desdém, manifestações de rancor estão crescendo em maior ritmo.
Deste modo, percebe-se que tomar bens concretos de pessoas lhes torna muito menos rancorosas do que opinar contra a validação de suas crenças, posições, hábitos e etc.
Uns poucos não se importam com críticas e não confirmações. Em menor número estão os que até apreciam ser criticados e não validados (caso dos nerds já citados). Ainda assim, e mesmo que não tenham praticado crimes, metem medo, não são apoiados e são cancelados em esquemas de perseguição disparados ainda que inconscientemente.
Vamos insistir que é assim, sempre foi e sempre será assim, porque isso são basais da natureza humana medo, orgulho e agressividade e podem operar grupalmente. A liberdade é que não é basal e opera individualmente.
E o que o cancelado deve fazer? Deve preservar sua liberdade pelos meios apropriados, que são regar suas plantas, amar suas rosas porque o resto é só sombra de árvores alheias.
SP, 04/03/22
3 comentários
Caro Vicente. Resumindo temos um ostracismo político, institucional, e outro em nossas relações. No primeiro trata-se, teoricamente, de impedir que algum notável, especialmente se tem uma função política, extrapole suas funções, pratique injustiças, domine de modo indevido a sociedade. Os critérios variam conforme o tempo e o espaço. Existiu e existirá. Bem ou mal aplicado. Não vejo como impedir isso. O que se pode, é atuar conforme as leis e costumes autorizados para se defender. No segundo temos que enfrentar os defeitos daqueles que convivem conosco de modo pessoal ou virtual. Aqui já não é, necessariamente, caso de legislação, problema necessariamente institucional. Aqui entra o terreno das virtudes. Tenho que saber me portar tanto diante do ostracismo quanto da bajulação. Não devemos viver a partir da expectativa dos demais. Temos que ser nós mesmos. Ou como dizia Píndaro: torna-te o que tu és. Em todo caso, como você ressalta, temos que saber entender a natureza humana, para o bem e para o mal. Grato pela reflexão. Abraço.
Muito bom querido Vicente!
Mas tem um ponto que me preocupa bastante que é o cancelamento no meio corporativo. O LinkedIn por exemplo, onde as pessoas cada vez mais precisam se isolar e evitar dar opiniões ou simples comentários por causa dos justiceiros sociais que conseguem acabar com uma reputação importante que é no mercado de trabalho. Cada vez mais você precisa concordar com tudo da lacração nesse meio, e caso discorde esses “justiceiros” vão até a página da empresa que trabalha, menciona ela e inferniza o RH até demitirem as pessoas. Outro exemplo foi da empresa de investimentos que postou uma simples foto com os funcionários onde não tinha pessoas negras ou muitas mulheres, e mesmo assim isso repercutiu até nos jornais que todos naquela foto são racistas. Pessoas com família, filhos sendo expostas por militantes em rede de trabalho sendo chamados e marcados com as piores denominações para um ser humano. Em algumas áreas isso marca a pessoa e infelizmente em casos assim não é fácil lidar…
Caríssima,
O mundo corporativo é uma pequena POLIS, padecedor de todas os vícios de poder que as pólis têm. Via de regra, é um muito muito ruim, acobertado por um “glamour” que não se sustenta após uma análise mínima.
É a “selva”, “jaula”, “front”, etc… de muita gente e com muito CANCELAMENTO como “meio de guerra”.
Abraço,
Vicente