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A PERGUNTA “QUEM SOU EU” E A FORÇA DA SOLIDÃO

A PERGUNTA “QUEM SOU EU” E A FORÇA DA SOLIDÃO

Visões de Ortega Y Gasset, Erich Fromm e Louis Lavelle

 

A solidão de qualquer um pode significar opostos extremos entre si: desde padecimento de desamparo, carência, vergonha, inibição, etc… ou gozo de contentamento, suficiência e amizade para consigo.

A solidão é assunto com forte parentesco com a “pergunta das perguntas”: 

 

  1. Quem sou eu?

 

Tal pergunta também carrega sentidos bastante opostos entre si. Em certos sentidos, ela é facílima de ser respondida e, noutros, é talvez a mais árdua questão humana, eis que se reveste de contornos até de “segredo”.

É facílimo responder a tal pergunta dando respostas superficiais do nosso Ego, que é pouco mais, ou até nada mais, que nosso “lugar social”: sou filho de Fulano, parente de Beltrano, exerço profissão tal, estou na classe social x, moro em tal lugar, tenho padrão de consumo x, y e z, e assim por diante.

Em grande medida, é natural e mesmo indispensável entendermo-nos igual  (“igualados”, em voz passiva) aos nossos “lugares sociais”, os quais, a rigor, são mais contados a nós que contados por nós.

Mas que se atente que tal “naturalidade” é coisa etária, própria para crianças e de adolescentes, seres naturalmente desamparados, desorientados e a quem as aparências ainda são tomadas como “coisa verdadeira”.

O volume de marmanjos na idade cronológica, mas psiquicamente imaturos, seja por demasiada demora em maturar, seja por recusa intensa da maturação e defesa apegada, maníaca, da autoinfantilização é muito grande. Nenhum leitor deste texto carece de conhecer muitos casos em seus círculos próximos e se, aliás, não é por si, um “marmanjo infantil”.

É absolutamente inevitável para a maturação que se suba o nível da resposta à pergunta de “quem sou eu”. Uma pessoa amadurecida não responde a “quem sou eu” apenas por Egos, papéis sociais, opiniões de terceiros acerca de si, relações em que se está, etc… Afinal, seria como alguém tentar dizer que “é as roupas que veste”, resposta que sequer alcança o “corpo” e, deveras menos ainda, a “alma”, “o caráter”, “a vocação”, etc…, que são os componentes reais do tal Eu.

É sempre oportuno refratar as luzes de Ortega e Gasset, que salienta que “eu sou eu e minha circunstância“. Desse asserto, a que aderimos, destacamos que não há como alguém ser apenas as circunstâncias – “egos”.

Não há exagero em afirmar que os que são só “egos” (egocentrados) são, de certa forma, “não Eus” ou “Eus despersonalizados”.

Gasset é muito taxativo num senso de “altitudes vitais” distintas de pessoa a pessoa. É claro que o só egocentrado vive rasteiramente.

Uma expressão lúcida aos egocentrados foi proposta por Erich Fromm, pensador teuto-americano que influencia muito este articulista: “autômato”. Ele salienta, ademais, que a “massa humana” é predominantemente de autômatos: “as relações humanas são essencialmente as de autômatos alienados, cada qual baseando sua segurança na posição mais próxima do rebanho e em não ser diferente por pensamentos, sentimentos ou ações”.

Os autômatos são sedentos insaciáveis de pseudo segurança e só da pseudo mesmo, por carência de condições de personalidade efetiva. No todo do pensamento frommiano, se demonstrará que a personalidade efetiva, “o Eu além das circunstâncias”, só se constitui com os elementos psíquicos da “autoestima” e “senso de potência”, ambas coisas raras na escala social. Os personalizados são esperançosos e não sedentos de pseudo segurança.

Outra luz a ser refratada é a de Louis Lavelle, que assevera que o Eu, nos sentidos amadurecido, adulto e inteligente do termo, para mais que as acepções meramente egóicas, se chama de três sinônimos: “SI”, “consciência” ou mesmo “consciência de si”.

A natureza do SI, para Lavelle, é de uma POLIFONIA, ou seja, uma multiplicidade de vozes interiores. Essas vozes ora se associam e ora se dissociam.

Estão associadas quando dialogam sincera e ordenadamente entre si, por meio de “atenção muito ativa e muito prolongada”. Nessa situação, a questão de “quem sou eu” estará sempre presente e tal que a resposta a ela estará sempre sendo incrementada sucessivamente.

Estarão dissociadas tais vozes quando emudeçam, tumultuem (inclusive tumulto ensaiado – caso do autoengano deliberado), rixem entre si ou, por múltiplos meios, deixam de se ordenar, caso em que a reposta efetiva sobre o Eu fica debilitada.

Nesses casos de debilitação da descoberta essencial, exsurge muita dor, pois “não ser efetivamente dói muito”. Daí, a necessidade da “distração” como lenitivo prêt-à-porter.

Distração é o oposto próprio da “atenção”. Distrações são múltiplas e mesmo infinitas (ilusões, fantasias, desejos, prazeres, convívio, festas e, claro, Egos, muitos e infinitos Egos). O movimento de distração é de busca de labirinto. Gira-se tanto no labirinto que não se teria tempo para responder à “pergunta das perguntas”.  O movimento oposto, da atenção, é de busca de caminho para fora do labirinto. Ou seja, pela atenção, vai-se incrementando a resposta. 

Um asserto de relevo de Lavelle ao qual igualmente aderimos e que arremata o ponto da essência da distração, próximo ao senso de labirinto: “a distração é sinal da minha incapacidade de bastar-me a mim mesmo”.

Sobre a atenção, próxima ao senso de caminho, o mesmo autor asseverou, por sua vez: “a atenção é a um só tempo um ato de liberdade”.

 

  1. A Solidão

 

Como se diz coloquialmente “os bares estão cheios de gente vazia”. Estão lá justamente para se distrair e tampar os ouvidos da pergunta “quem sou eu”.

O egocentrado se aterroriza com a solidão, pois nela os egos não conseguem nutrição e a pessoa cai no vácuo. Na solidão, tudo impele à “atenção” ao senso de “segredo” que há em cada um de nós. Medo da solidão é medo do segredo e é medo de liberdade e constitui, segundo Fromm, a gênese até do masoquismo[1].

Quem tem personalidade ou o SI desenvolvidos não fica propriamente a sós pela ausência de outros, mas “quando se está a sós, diz-se que se está a sós consigo mesmo” (asserto de Lavelle).

Não duvide o leitor do inferno que é uma vida que não pode se desligar da comunidade dos egos e nem, também, da quantidade de vidas infernais que há. Só muito excepcionalmente, o convívio social é propício à atenção. 

Observe-se este outro asserto de Lavelle: “o valor de um homem se mede pela potência de solidão que nele subsiste, mesmo em meio à sociedade, e pelo ardor interior que a alimenta”.

Ficam óbvias duas conclusões: a) que o “valor” humano é a abertura ou atenção adulta e solitária à questão do “segredo inesgotável de quem eu sou”; b) a solidão efetiva (solitude) é de natureza espiritual.

O abono da solidão não pugna pela vida ermitã ou monástica. Cabe abonos à solidão material, física, como em exercícios de recolhimento, retiro, peregrinação, meditação, oração, entre várias formas de afastamento material propriamente dito. Isso, contudo, tende mais à natureza de meio de tonificação que uma finalidade em si, pois somos gregários e “devedores de amor” por dar.

 O abono que aqui se faz da solidão é o abono da tonificação da personalidade, da capacidade de enfrentar constantemente a pergunta das perguntas, da constituição do SI, com autoestima e senso de potência e, claro, da forte capacidade de atenção, atenção que não resta abalada mesmo em convívios repletos de oferta de distrações (que conquista nobre!).

O forte para ficar consigo inclusive na presença dos outros sem ruptura da integridade do seu Eu pode, claro, fazer frentes sucessivas perante a questão de quem sou eu, elaborando, ao cabo de toda uma vida, respostas sucessivas não erráticas, mas progressivas – epifania!

Ainda que toda a cultura milite e influencie contrariamente, há delícias no ensimesmamento voluntário lúcido e não carente. A rigor, esse foi um modus vivendi comum de Sócrates conforme anotado, não sem razão, por Platão. 

Também não sem razão, Sócrates não era distraído e tampouco deixou abalar sua integridade e nem endureceu seu coração em todos os muitos convívios, inclusive perversos, que travava.

Não duvide de uma regra prática de concepção deste ensaísta: “de quem não tolera solidão alguma, nada espere de edificante e até mesmo dele se acautele”. Dê algum valor pois aos que treinam ativamente sua solidão. Tendem a estar criando forças importantes.

Lavelle, mais uma vez a luz dele, também parece abonar a consideração acima, pois assevera: “ninguém jamais fará algo de grande no mundo se primeiro não for capaz de fechar-se em si mesmo, de encerrar-se numa solidão perfeita como num casco duro no qual descubra a semente de seu próprio crescimento, o segredo de sua força e de seu destino”.

Escrevi este artigo num momento de releitura de 3 Obras muito marcantes para minha formação: A Arte de Amar, de Erich Fromm; A Consciência de Si, Louis Lavelle; e O Homem e os Outros de Ortega Y Gasset. O momento também era vizinho à minha saída para uma Peregrinação de Longa Distância, prática a que me dedico para “revelar segredos”.

 

Vicente do Prado Tolezano

SP., 23/05/24

[1] A visão meramente caricata de “masoquismo” é de “vício sexual” ou “de quem gosta de apanhar”. O senso mais apurado, contudo, é o medo extremo de solidão, tal que a pessoa prefere se manter num vínculo em que até apanha pelo receio de ficar só.

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8 comentários

  1. Ana Carla Capelossi disse:

    Belo texto, com importantes reflexões. A maturidade nos traz certa necessidade de solitude, acompanhada ou não.

  2. Lavinia disse:

    Boa reflexão. A arte do equilíbrio de viver a solitude e em sociedade.

  3. Madeleine disse:

    A solidão eh o ambiente propício para auto reflexão. Entendo correto nos conhecer mas tbm não expor nossas fragilidades. Nem sempre gostamos do que sentimos… mesmo sendo sensações humanas…

  4. Symon Hill disse:

    Obrigado por compartilhar essa importante reflexão — e, pôr que não, descoberta interior — de grande valia! O amadurecimento intelectual e a atenção àquilo que é real e concreto, no ato em que ocorrem, ficaram evidentes para mim no texto. Pude, ao ler, imaginar um pouco de sua experiência. Obrigado, Vicente!!

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