070 – Dignidade, Senhores e Servos

Autor: Vicente do Prado Tolezano 23/08/20

         Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) era enfático na existência de duas grandes categorias de homens: 1) os que têm capacidade de deliberação; 2) os que hão de se submeter.

          É obvio que o grande filósofo mencionava os polos de categorias e também, ao menos, o caráter geral de cada pessoa, pois, em leitura miúda, todos deliberamos pelo menos um mínimo e também nos submetemos ao menos um mínimo. Sem relações de ordem/mando e serviço (“autoridade”) é impossível a vida.

         Quem tem caráter deliberativo habitual e bem desenvolvido é livre e quem não o tem é servo.

        O livre também é chamado de senhor, como “senhor de si” e tal que poderá ser senhor doutrem também. Servo, a sua vez, goza dos sinônimos de servil, servidor, submisso ou até soldado. O conceito também alcança, em parte, o senso moderno de masoquista, caso em que se destaca a conotação pejorativa, por falta de dignidade, tudo como ficará claro adiante.

         A relação entre senhor e servo é similar à de alma e corpo. Aquela manda (agente) e este executa (reagente). Bem de ver que, na acurada concepção, matéria (corpo incluído) é tudo o que é ordenado (tem senhorio) a partir de fora.

        O termo escravo, por vezes usado como sinônimo de servo, reservamo-lo para situações muito extremas de externalidades sobre alguém. Por exemplo, pessoa mantida em cativeiro forçado, sujeita à violência física ou moral agudas, comprada e vendida como mercadoria, etc …, situação manifestamente não natural (violenta) a que alguém foi submetido.

         Não cuidamos, neste artigo, do escravo no sentido acima, mas do mero servo, o qual, não delibera a despeito de não padecer de violência externa que lhe tolhesse essa possibilidade.

         Pode perfeitamente o servo gozar de intelecto poderoso, por vezes até mais refinado que o intelecto do seu senhor, mas, sempre, a relação entre eles se funda na desigualdade da “faculdade de deliberar (ordenar)”, que, não obstante, também integra o intelecto.

        Este articulista é testemunha de miríades de situações, em particular mas não exclusivamente nos ambientes corporativos, de gente muito instruída, até com pós-graduação, portadora de habilidades técnicas, científicas, de raciocínios complexos, de discernimentos finos, etc …, mas assaz débil na exata “faculdade intelectual de deliberar”, às vezes até com relação a coisas simplórias.

         Por igual, o testemunho alcança pessoas com parcos recursos cognitivos, mas desenvoltas com tomada de deliberações constantes. Seguramente, a maior parte dos empreendedores deste país goza de “apenas razoável” instrução, mas têm alta força deliberativa interior, tanto criadora quanto executiva.

          Ademais, urge destacar que há gente deliberativa em “x” domínio e que é serva em “y” domínio e vice-versa. Quem não conhece pessoas leoas em negócios mas gatinha em casa e vice-versa!

          Nós (o articulista) abonamos a proposta aristotélica de que a distribuição senhorio (líder) – servo (liderado) é de índole natural, a despeito de tantas bandeiras politicamente corretas se hastearem contra essa obviedade.

          O masoquista é servo, mas, frisemos, nem todo servo é masoquista. O autoritário, a sua vez, é senhor, mas nem todo senhor é autoritário.

           Em latim, “acutoritas” denotava “quem faz crescer/produzir”, cepa de origem dos termos “autoridade” e “autoria”, que designam respectivamente: i) “produção com outros”, no sentido de com ou por ordenação de outros; e ii) produção própria, mais individual.

          Uma relação senhor–servo é dita DIGNA se articulada de forma a uma produção eficaz e com crescimento dos próprios. Veja que o soldado é feliz por ser submetido ao bom comandante e vice-versa. Podem ganhar a guerra e ambos se desenvolvem ao longo desse processo. Se um deles for inepto, ambos perdem.

          Outro excelente paradigma de relação de autoridade (digna) é a que se passa entre mestre e discípulo. Este colhe muito da relação ordenadora que recebe e aquele se aprofunda bastante. Ao cabo, a frutificação externa também virá por conta de que ambos se desenvolvem (crescem), restando mais produtivos a outrem. Como se diz no jargão corrente, são relações ganha-ganha.

          Relações indignas de autoridade há milhares para exemplificar, seja por inépcia dos fruticultores (do senhor e/ou servo ou ambos) ou pelos aspectos endopredatórios deles.

          A sociedade goza de esquemas múltiplos de distribuição de “títulos de autoridade”, garantidos por lei, aos quais se presume que pessoas vão se submeter “pela própria força do títulos”, organizados em forma piramidal de hierarquia. A administração pública, corporativa, militar, escolar, universitária, eclesial, etc … são assim.

          90% das relações de autoridade aí fundadas (nos títulos) são tão sólidas quanto a força que um pai tem sobre filho adolescente apenas pelo “argumento do pátrio poder outorgado por lei civil” … Típica hipocrisia de ineptos, reciprocamente estéril e predatória.

          O busílis, contudo, do artigo, já posta claramente a formulação do contexto, é o que é a DIGNIDADE!?

         Dignidade é uma virtude, com força de uma montanha, que se põe entre dois vales de fraquezas sobre o tema da AUTORIDADE entre Senhor e Servo, ou entre a ordenação e o serviço.

          Do senhor digno se espera que, além de bem se ordenar (condição elementar para o respeito pelo servo), seja apto, equilibrado, justo e promovente da frutificação do trabalho como um todo e do desenvolvimento do servo. Se incorrer nos excessos de autoritarismo, arrogância, jactância por título, mesquinharia, etc … ou nas deficiências como inépcia, fraqueza, complacência, etc … será um senhor INDIGNO.

           Do servo se digno, a sua vez, se espera que bem acate o que há de ser acatado por critério do razoável, em relação à missão de frutificar e quanto à manutenção de sua integridade. O corpo do servo, óbvio, não deve ser mole e a sua alma, também óbvio, nunca deve ser entregue. Se incorrer em injusto espírito de revolta, insubordinação, inépcia, cinismo, deslealdade, etc … ou nos seus opostos de obediência cega, masoquismo, bajulação do senhor, perda de critério, auto-anulação, castração, etc …, será um servo INDIGNO.

           Sem autoridade no sentido de virtude de mediania aqui tratado não se vive ou se vive pessimamente. Os arranjos relacionais meramente autoritários ou de desmando têm vida efêmera.

          A dignidade é senso fino e exercício ativo de respeito de limites mútuos entre a liberdade de uns e o serviço de outros por critério de razoabilidade, por vezes, muito difícil de apurar, mas não impossível e sem o qual os fluxos de ações nunca terão consistência.

           Não apenas a dignidade, mas, em efeito, toda virtude é árdua de se conquistar e manter e se é que manter não seja mais difícil que conquistar. A razão há que estar ativa em alerta constante quanto aos valores dos fins envolvidos na relação de autoridade, quanto à adequação e proporção dos meios, à superação de subjetividades, à apuração de contextos, enfim, manter-se digno é uma atividade prudencial, seja na ponta ativa ou passiva do vínculo de autoridade.

            Uma regra que nunca mente: a perversão-vício do senhor implica a perversão-vício do servo e vice-versa. A perversão dessa relação implica o sadomasoquismo, que pode variar de apresentação muito explícita ou muito sutil.

           Se persecução bilateral da exigência racional dos limites, modos e proveitos integrados de mando e de serviço não funciona, a relação tem que ser desfeita, por iniciativa do servo ou do senhor; do contrário, é caso de INDIGNIDADE, cuja conta à integração da personalidade é caríssima. A manutenção crônica de relações de autoridade ineptas ou predatórias é ato próprio do masoquista e do sádico.

           A rigor e para fins morais, existenciais e de crescimento é irrelevante distinção entre senhor e servo entre as pessoas. O que é relevantíssimo, bem de ver, é a distinção entre os dignos e os indignos. A dignidade do servo para com o senhor transcende a pessoa do senhor e a recíproca é igualmente válida.

A reprodução do texto é livre, devendo ser citada a fonte e preservada a unidade do pensamento.

Vicente do Prado Tolezano é graduado em direito peça PUC/SP e Mestre em Filosofia pela Faculdade do Mosteiro de São Bento de São Paulo, com investigação sobre a Metafísica de Aristóteles. É diretor da Casa da Crítica e da Tolezano Advogados.

Tem formações complementares diversas na área da Gestão, Psicanálise, Mediação, Filosofia Clinica, Lógica e Argumentação e outras sobre a Alma Humana.

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