056 – Analfabetismo Funcional é Falta de Atitude (e nada mais)

Autor: Vicente do Prado Tolezano 11/10/2019

Comecemos por exemplos de como funciona um chapeiro que seja analfabeto funcional e num contexto que sequer há “leitura de texto”.

Todo os dias, um chapeiro faz XBURGERs e corretamente. A cada “XBURGUER” que um freguês diz, ele sabe exatamente como funcionar. Um dia, contudo, um freguês diz “quero aquele sanduíche de hambúrguer com queijo derretido”. O  chapeiro pode não saber o que fazer e ficar acuado ou agressivo pelo sentimento de vazio que lhe tomará, pois, se entende “sem mando”, já que ele só capta o mando “XBURGUER”, sem nunca ter entendido o que significava a expressão, mesmo tendo “funcionado” centenas de vezes sob ela.

Outro dia, um freguês lhe pede “XBÚRGUER com bola de sorvete de morango por cima”. O chapeiro eventualmente irá SIM cumprir o “mando” absurdo e colocará a bola de sorvete sobre o hambúrguer (aargh!), pois ele não entende que necessariamente a situação era de JOCOSIDADE amigável para ele e o freguês rirem juntos ou de DEBOCHE hostil do freguês que queria lhe humilhar caso ele cumprisse o absurdo.

Quem não percebe a existência massiva de chapeiros, atendentes, pedreiros, bancários, comerciários, advogados, arquitetos, enfim, gente de todas as classes sociais e profissões mas que é analfabeta funcional, não é que não esteja no mundo, mas é também um analfabeto funcional, ou seja, é alguém que “até eventualmente funciona, mas não significa”.

A alfabetização é bastante universalizada, mas a capacidade de leitura (chamada de letramento) é muito restrita.

No sentido próprio, ler é inteligir e a própria etimologia de “inteligência” denuncia o imbricamento que tem com a atividade de leitura: inter (“entre”) + legere (ler), como “ler  dentro” ou “captar/penetrar” o sentido das coisas.

Os etimólogos contam também que leggere também se contém na mesma cepa semântica de “eleger”, reforçando que o ato de ler é um ato de eleição/escolha, inserto num todo de captura de sentidos envolvidos diante de uma percepção e daí a escolha do sentido adequado (também chamada de interpretação).

Leitura, pois, é muito mais que mera “leitura textual”, pois é leitura da realidade, dos fatos, circunstâncias, das experiências, etc…, sendo perfeitamente possível a “atitude leitora” sem mesmo a posse do alfabeto.

Alfabeto e a escrita, aliás, sequer são naturais do homem, mas inventos. A fonação e acuradamente a fala articulada é que nos são naturais e não é nenhum exagero dizer que já líamos antes da escrita ser inventada.

Em termos específicos, alfabetizar é prover a posse da codificação/decodificação de fonemas em grafemas e vice-versa. Diz-se analfabeto funcional quem tem essa posse, limitada a quadrantes meramente materiais, mas não a capacidade efetiva de ler, em que existe a ascensão da inteligência, quadrante formal. Noutras palavras, o analfabeto funcional é alfabetizado iletrado.

Como já dito, o “analfabeto funcional até eventualmente funciona, mas não significa”. A leitura textual lhe pode servir como “fonte de instrução ou de mando”, para que sabia o “que” fazer, ainda que não capte o “o quê” que a instrução efetivamente diga.

Os exemplos do chapeiro deixam tudo isso acima bem claro. Não sabemos se ele era ou não alfabetizado, mas sabemos que era iletrado e cujo único problema era “cumprir mando”, sem absolutamente nada decidir, ou seja, com escape da leitura. A menos que ele passe a adotar sistematicamente “atitude de leitura”, ele nunca vai progredir, pois progressão é efeito da última etapa da leitura, que é a retenção e o nosso chapeiro nem dá cabo das etapas primeiras.

Estamos a afirmar que a “atitude de leitura” é constituinte do ser humano e tal que quem não a cultiva tem “menos vida humana”, como uma “sub-vitalidade” e tal que será mero servo, cumpridor de função e desesperado se tiver que decidir.

Aprender a ler textos deve ir além de ser meio de prover instruções para o  alfabetizado iletrado cumprir, mas, se bem feita, há de prestar a incutir, facilitar, lapidar, habituar, tonificar a faculdade natural humana de atitude de leitura/inteligência, tal que sirva para “ler textos e muito mais que eles”.

A abordagem inteligente de um texto se dá num fluxo sucessivo de perguntas e respostas formuladas pelo próprio leitor, tal que é uma ATITUDE DE INICIATIVA DO LEITOR perante o livro, tais como, por exemplo:

1)      Esse texto tem sentido?

2)      Do que cuida esse texto?

3)      O que exatamente o autor disse?

4)      Quantos sentidos diferentes há no que o autor disse?

5)      Qual sentido é o mais fiel à vontade efetiva do autor?

6)      Como pessoas diferentes ou em contextos diferentes podem interpretar diferentemente esse texto?

7)      Por que ele disse desse modo ou porque transmitiu essa informação?

8)      Por que ele organizou o texto dessa forma?

9)      É verdadeiro o que o autor diz?

10)   São verdadeiros os pressupostos de que o autor partiu?

11)   Esse texto altera algo nas minhas crenças?

12)   O que eu vou levar desse texto adiante?

13)   O que eu preciso combinar desse texto com outros textos?

A abordagem ativa treinada sistematicamente sobre textos há de ser levada para a vida geral, caso em que a PESSOA SE FAZ MAIS INTELIGENTE.

Só por essa abordagem ativa de perguntas e respostas, mesmo que no âmbito intraconsciente do leitor, é que as etapas da leitura se realizam e, então, a pessoa pode progredir.

São as etapas:

1) a simples percepção;

2) a recepção da literalidade (ou dos efeitos);

3) a interpretação (a análise das causas e escolha do sentido adequado entre vários possíveis);

4) a retenção (o aprendizado propriamente dito, a assimilação da decisão interpretativa tomada).

Os analfabetos funcionais nunca passam da 2ª etapa da leitura e ainda assim as exercem de forma puramente passiva, como se percepção ou recepção fossem passividade!  Por isso tudo é que nunca progridem (aprendem) e só funcionam, girando igualzinho todo dia. A única pergunta que o analfabeto funcional se faz é: “o que é para eu fazer agora?”.

O letrado pleno não só cumpre as 4 etapas, como ele as cumpre ativamente. Ele vai buscar a recepção de percepções, separa o sentido literal, analisa as possibilidades decisórias de sentido e ESCOLHE uma e, ao cabo, assimila o conhecimento decorrente da sua eleição de sentido de leitura. Aí, ele se TRANSFORMA enquanto ser e vai ler mais, mais e mais, que equivale a viver mais. Para que não reste dúvida: só se assimila o que se decidiu ser o sentido.

Leia livros de forma burra e carregarás atitude burra em todas as dimensões da vida. Leia livros de forma inteligente e carregarás atitude inteligente em todas as dimensões da vida. Somos o que DECIDIMOS ser e essa decisão é antecedida de inúmeras e pequenas DECISÕES anteriores, que é a de ler, no sentido próprio de “decidir o sentido” de cada uma percepção nossa.

É assim que é e o analfabeto funcional, gostem ou não, é aquele que só decidiu NÃO SER A SI.

A reprodução do texto é livre, devendo ser citada a fonte e preservada a unidade do pensamento.

Vicente do Prado Tolezano é graduado em direito peça PUC/SP e Mestre em Filosofia pela Faculdade do Mosteiro de São Bento de São Paulo, com investigação sobre a Metafísica de Aristóteles. É diretor da Casa da Crítica e da Tolezano Advogados.

Tem formações complementares diversas na área da Gestão, Psicanálise, Mediação, Filosofia Clinica, Lógica e Argumentação e outras sobre a Alma Humana.

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