048 – Retórica e Humildade
Autor: Vicente do Prado Tolezano 22/03/2019
Exemplos de 2 palavras excessivamente comuns, mas desconhecidas e bem interligadas: “retórica” e “humildade”.
No senso comum, tantas vezes, a primeira (“retórica”) é vista como a “arte da enganação” e a segunda como “timidez/fraqueza/humilhação, etc…”, ou seja, com vieses pejorativos da semântica própria delas.
É fato que a arte retórica é mal afamada já que costuma ser companhia das piores pessoas possíveis (tóxicas). É só falar “isso é retórica” que tal é decodificado como “isso é enganação” ou, em hipóteses mais brandas que “isso é tolice”.
Sucede, contudo, que as melhores pessoas possíveis (amorosas) são necessariamente useiras e vezeiras da arte retórica. Isso é pouco percebido tanto porque são poucos os amorosos em comparação aos tóxicos quanto que a bondade tende mais à sutileza que a maldade. Os próprios amorosos, por sua vez, muitas vezes não entendem que praticam retórica mesmo inconscientemente.
No sentido puramente clássico, “arte retórica” é a arte dedicada à educação e ao cultivo da VONTADE e das MOTIVAÇÕES humanas[1] e num esquema em que “o agir segue o ser”, que, parafraseando, quer dizer que “educa-se a vontade para bem-querer e daí o bem-fazer virá” e não “instrui-se a feitura do bem para daí a boa vontade decorrer”, tal como expressiva parte da psicologia moderna preconiza.
Para colocar em exemplos: como persuadir alguém que se droga a não mais se drogar?
A tentativa mais frequente e igualmente mais ineficaz é argumentar com o drogado sobre a fisiologia, sobre química, sobre os efeitos deletérios orgânicos etc… Tendem a ser palavras ao vento essa instrução de ação. Também aponta para o vácuo de efeitos prender a pessoa para que se acostumasse a fórceps com a abstinência.
A única coisa que pode persuadir o drogado a não mais se drogar é “ter um motivo”, normalmente de satisfação emocional. Por exemplo, que ele tenha que não se drogar para “poder ter x, y ou z”, outras relações sociais, para ser amado/aceito/reaceito num lugar x etc…
O motivo não pode ser introjetado tal como as informações. O retor tem que fazer operar uma “negociação intrapessoal/sintética” no seu auditório (no caso, o drogado) tal que ele consiga ficar vivencialmente (nem que por imaginação) exposto aos “estados emocionais pré e pós deliberação proposta” e, então, ser persuadido.
O processo da arte retórica, mapeado com brilhantismo por Aristóteles (384 – 322 a. C.) e incrementado teoricamente por Cícero (106 – 43 a. C.) é muito amplo (a mais difícil das artes) e não será reduzido neste singelo artigo, senão para o destaque de seu miolo que é o senso de uma “negociação intrapessoal/sintética com exposição aos estados emocionais pré e pós deliberação”, locução essa agigantada e que pode ser resumida numa palavra: TRANSFORMAÇÃO.
Toda subida de degrau “nos níveis da motivação/vontade” é uma transformação, tal que a “carga ou nível de ser” do sujeito passa a outro patamar. No exemplo drogado, um incremento no nível motivacional/volitivo tende não apenas a lhe prover a liberdade do problema imediato da droga, mas a mais que isso também.
O esquema próprio da alma humana é tal que as ações melhoram porque o sujeito se transforma e não é que ele se transforma porque suas ações se alteraram! Exatamente por isso, somos ser espiritual sob a LEI DA INICIATIVA e não meramente ser animal-material sob a LEI DA INÉRCIA. Transformar alguém, nesse sentido, é ATO DE AMOR e perfeitamente contido nas “obras de misericórdia espirituais” pregadas pelas tradições cristãs e seguramente por outras sob outros nomes.
É óbvio que existe a má retórica, a qual pode fazer o seu o auditório retroceder na escada dos níveis de motivação/vontade e vemos isso todo dia. O que é importantíssimo destacar é que “retórica perversa não se rebate com argumentação lógica/racionalista, mas apenas se rebate com boa retórica”. Essa advertência já vinha de Aristóteles, senão mesmo de predecessores.
Agora, a interligação entre as duas palavras: porque as pessoas caem tanto nas arapucas da má retórica? A resposta mais aplicável é: por FALTA DE HUMILDADE.
O sentido próprio de “HUMILDADE” bebe do senso de “ACEITAÇÃO”, num viés virtuoso, de “bem perceber/reconhecer objetivamente suas próprias limitações ou fraquezas e agir de acordo com elas”.
A HUMILDADE está em baixa e, como já visto, é pejorativamente decodificada como “timidez/fraqueza/humilhação etc…” porque socialmente valoramos o seu oposto, que é o vício do ORGULHO, prática de PROJEÇÃO de poderes em face/contra outros, poderes normalmente “forçados” ou até inexistentes.
ORGULHO, aliás, é pai e mãe da maldade e é o que fez anjos dar ouvidos à retórica demoníaca retrocedendo em nível de ser.
O humilde é forte porque se põe limites objetivos tendentes ao real e, assim, pode ser “tocado pela boa retórica”, que, como já dito, passa por assumir vivencialmente o efetivo estado/nível de motivação (de ser) para cotejar com outro e proceder à síntese da intranegociação transformadora NAS VÍSCERAS.
O orgulhoso é fraco porque tende a não se reconhecer como é. Ouvirá facilmente a falsa retórica, assumindo, na partida da exposição, estados que vivencialmente não são seus e tal que é impossível a transformação; só gira em falso e NO TEATRO. A profissão mais retórica que existe é a de TERAPEUTA (a segunda é a de POETA), contrariando as respostas rápidas de que seria a de advogado ou de vendedor.
Um terapeuta veterano já sabe, em poucas sessões, o “nó existencial” do paciente. Seu trabalho não é debater com ele. É praticar retórica, no exato sentido que está exposto acima e que bebe dos clássicos. É fazer o próprio paciente captar seu nível de motivação/vontades e seus estados, que decorrem disso, cotejando com novos estados decorrentes de novos níveis para que o paciente INTRANEGOCIE, SINTETIZE-SE ou TRANSFORME-SE, ou seja, eleve-se volitivamente.
Imagina, agora, conduzir esse processo com um paciente ORGULHOSO, que exige ser tratado a partir de um patamar de vontade em que não está, ou como se ele fosse o que não é! Sintetizará até boas peças de teatro, mas não a vida. Se o terapeuta for canalha, bajulará o paciente praticando a má retórica. Se o terapeuta for bom, recusa participar do teatro.
Sempre precisamos de um retor, seja terapeuta, poeta ou … de nós mesmos praticando a autoretórica. De qualquer forma, o de que mais precisamos é da humildade. Com ela, naturalmente nos inclinamos à boa retórica, seja própria ou de terceiros. Sem ela, naturalmente a má retórica nos achará, pois a rigor estaremos procurando-a.
[1] O discernimento entre “vontade” e “motivação” é relevantíssimo, mas transcende os limites deste artigo e, pois, será objeto de artigos futuros.
A reprodução do texto é livre, devendo ser citada a fonte e preservada a unidade do pensamento.
Vicente do Prado Tolezano é graduado em direito peça PUC/SP e Mestre em Filosofia pela Faculdade do Mosteiro de São Bento de São Paulo, com investigação sobre a Metafísica de Aristóteles. É diretor da Casa da Crítica e da Tolezano Advogados.
Tem formações complementares diversas na área da Gestão, Psicanálise, Mediação, Filosofia Clinica, Lógica e Argumentação e outras sobre a Alma Humana.
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