036 – Amorosidade e Solidão

Autor: Vicente do Prado Tolezano 04-09-2018

Poucas coisas são tão AMBÍGUAS como a solidão.

Por conta do terror de se estar SOLITÁRIO quantas falsas companhias não se buscam, garantindo assim, mais que a solidão propriamente dita, mesmo a queda no VÁCUO EXISTENCIAL

É próprio do ser humano trocar JÓIA por BIJOUTERIA e insistir que esta é aquela, mesmo contra todas as manchas e falta de brilho.

As multidões gostam das multidões. Gostam, aliás, muito mais das multidões que de si.

Um princípio muito importante da PRESENÇA é que ela nunca é material/corpórea. PRESENÇA é, sempre e sempre, “presença de/e no espirito”. Já disse LAVELLE, abonado de toda razão, que os corpos são meios divisivos e que só a consciência é meio de comunhão.

A carne, o mundo e o diabo são os 3 perigos que sempre nos espreitam. Se o leitor não apreciar a terminologia teológica de fé, que a substituta pelos termos das dimensões de besta (baixo ventre), de leão (peito) e humana propriamente dita (cabeça/intelecto), cunhados pela teologia natural de Platão (427 – 347 a.C.), que a referência puramente semântica dos perigos/desafios praticamente não se altera.

Quase todos os vícios da carne decorrem diretamente de mau posicionamento junto ao mundo: medo da assunção da identidade, baixa autoestima, vergonha, insegurança, etc…, entre outras vetorizações do instinto de FUGA.

É próprio da estrutura dos instintos ser dual. Com o instinto de fuga, faz dueto a LUTA, de forma que o instinto propriamente dito é de oscilação FUGA-LUTA. A conta cara do fugitivo é a SOLIDÃO, a qual tem contornos nítidos de DESAMPARO. O fugitivo se sente fora do mundo e padece de angústia e aflição por isso, em um processo que pode se incrementar inercialmente e muito.

O que se passa com o LUTADOR é, estruturalmente, o mesmo que se passa com o FUGITIVO, sendo as diferenças mais relacionadas às aparências do que às essências. Afinal, nem poderia ser diferente, ante a que LUTA e FUGA são a cara e a coroa da mesma moeda do medo da SOLIDÃO.

Normalmente, quem LUTA para ser integrado, aceito, respeitado, segue SOLITÁRIO senão nas aparências de acompanhado, já que a regra prevalecente dos convívios sociais dos lutadores é do encontro de corpos ou do encontro de EGOS (mecanismo de fixação defensiva de uma suposta identidade).

“Falem até muito mal de mim, mas não me ESQUEÇAM, por amor!” é asserto muito fidedigno aos impulsos dos “leões-lutadores”. É tanto ego diluído nesses tipos de situação que a própria projeção de esquecimento é antecipada como SOLIDÃO, com os mesmos efeitos angustiantes/aflitivos do FUGITIVO, apenas mais sutis.

Voltamos a repetir que corpos – nem mesmo convivência ou egos – implicam presença elisiva da SOLIDÃO, que só a consciência, produto espiritual típico provê.

É evidente que, ao tratarmos da dimensão do espírito, havemos de estar para além da animalidade, para além do império instintivo, campos em que a reflexividade da consciência não apita.

Toda sensação de SOLIDÃO, ao cabo último, pode ser projetada como uma solidão de cunho material, mas é, em termos bem rigorosos, um vazio de ansiedade/culpa existencial, exclusividade humana.

Nós, e só nós, temos a percepção de que viemos da natureza, mas que dela somos separados, em um processo de retorno praticamente impossível. Toda nossa trajetória biográfica é uma tentativa de fusão/reconciliação/comunhão com esse todo natural, cósmico ou divino, chame o leitor como melhor preferir.

A dimensão do espírito, obviamente, é separada da dimensão material, mas não cuida de separação sem vinculações de efeitos. A pobreza do espírito implica uma concentração exacerbada na matéria e o inverso é o caso.

O princípio que queremos destacar é que, centrada a pessoa na dimensão da matéria, a inércia instintiva impera e a SOLIDÃO vai se assenhorar por qualquer dos vetores antagônicos do dueto instintivo FUGA e LUTA. A causa disso não é externa/ambiental, mas é interna/antro-ontológica.

A pessoa de espírito forte, de gênio, transcendeu o nível instintivo, tal que também superou os perigos da carne e do mundo, passando a “ASSIMILAR” a existência, inclusive a própria dimensão DIABÓLICA dela.

Todo movimento ASSIMILATIVO é um movimento da consciência e é uma antessala da METABOLIZAÇÃO das vivências ou da biografia própria. Assimilar algo é muito mais do que fugir desse algo ou do que lutar contra esse algo. É ir para além dele, sintetizando-o em processo transformacional do próprio algo como do próprio assimilador. Ou seja, é uma “produção”, como resultado de uma multiplicação, muito mais que uma soma ou uma subtração ou mesmo divisão.

A ASSIMILAÇÃO-METABOLIZAÇÃO impede a projeção da SOLIDÃO, pois só ela é a resposta antidiabólica que combate, muito evitado pelas multidões.

O diabo não tem que ser visto apenas como um homem vermelho de chifres e que porta um tridente quente. A etimologia dediabolos denota aquilo que é DIVISIVO, SEPARADOR, REBAIXADOR, etc…, do homem para com o todo do estado de natureza perdido.

Todos nós temos a intuição interior dessa dimensão sombria diabólica que nós é ínsita. Quando o fugitivo foge do mundo, ele está, em efeito, fugindo do encontro diabólico que está mais adiante na linha da progressão espiritual. Quando o lutador está lutando contra o mundo, ele também é fugitivo, só mais sutil, pois não dá as vistas abertas ao encontro com o diabo, que necessariamente será SOLITÁRIO, mas, obviamente, cuidará de SOLIDÃO LIBERTÁRIA.

A ASSIMILAÇÃO-METABOLIZAÇÃO, e só ela, é não fugitiva e lutadora contra o objeto próprio. Sabe o leitor o outro nome que a ASSIMILAÇÃO-METABOLIZAÇÃO tem? É AMOR.

Porque existe a SOLIDÃO LIBERTÁRIA AMOROSA, e com semântica  diametralmente oposta à SOLIDÃO DO DESAMPARO, SOLIDÃO sempre será termo traiçoeiramente ambíguo.

O ASSIMILADOR-METABOLIZADOR-AMOROSO nunca é solitário, no sentido preciso de padecer de DESAMPARO angustiante aflitivo, seja por não ter ninguém, seja por temer de ser esquecido. Ele tem um esquema de se BASTAR.

Que o amoroso se baste não implica que ele deva ter ojeriza contra a carne nem contra o mundo, mas que os coloque no lugar próprio, ou seja, sob os seus pés e sem obstaculizar a sua cabeça verticalmente orientada ao céu. A ojeriza que ele tem que ter é contra a SOLIDÃO, que, a rigor, sempre é efeito de uma divisão dessa verticalidade, ou seja, diabólica.

A reprodução do texto é livre, devendo ser citada a fonte e preservada a unidade do pensamento.

Vicente do Prado Tolezano é graduado em direito peça PUC/SP e Mestre em Filosofia pela Faculdade do Mosteiro de São Bento de São Paulo, com investigação sobre a Metafísica de Aristóteles. É diretor da Casa da Crítica e da Tolezano Advogados.

Tem formações complementares diversas na área da Gestão, Psicanálise, Mediação, Filosofia Clinica, Lógica e Argumentação e outras sobre a Alma Humana.

BAJULAÇÃO: A CORDIALIDADE INSINCERA

Artigo do Vicente do Prado Tolezano. 

A bajulação – também chamada por adulação ou lisonja – é esquema de manipulação afetiva muito antigo, muito eficaz, que goza de longevidade garantida tanto quanto exista a humanidade, pois se funda em duas humaníssimas fraquezas: baixa autoestima e vaidade (ou orgulho ou arrogância).

Platão (428–348 a.C.) dedicou atenção ao tema em várias passagens de seus diálogos, principalmente no “Górgias”. O gigante grego assentou, com todo acerto, que o bajulador é atrativo, mas é animal terribilíssimo e de práticas altamente danosas

Plutarco (46–120 d.C.), filósofo romano e herdeiro explícito da tradição platônica, lavrou um tratado específico do tema, o opúsculo “Como distinguir o bajulador do amigo” – a nossa principal fonte para este artigo. 

A bajulação é farinha do mesmo saco da hipocrisia, sedução e outras falsidades. A dificuldade em extirpá-la é que além de se fundar, como já dito, nas frequentíssimas baixa autoestima e vaidade, ela veste as roupas daquilo que é muito buscado, por muito nobre à vida, que é a amizade. O bajulador sempre se dissimula como se amigo fosse, e é agradável, cordial e simpático na aparência. 

As seguintes condutas, quando praticadas com insinceridade, cinismo ou hipocrisia e (ou) com fins utilitaristas ou danosas, são próprias da bajulação:

  1. Elogiar, exaltar, qualificar alguém, validar, aplaudir ou manifestar admiração, louvor, etc. Coloquialmente, chamam-se de “massagens no ego”;

  2. Declarar-se inferior ao bajulado, prestando-lhe reverências ou prostrações que podem chegar ao servilismo; oferta de mimos, favores, mesuras; declarar concordância com as mesmas opiniões ou interesses do bajulado sobre vários assuntos e mudar opinião sempre que o bajulado também mudar. Coloquialmente, chamam-se “puxações de saco”.

Por uma simples bajulação, alguém pode “dar até a alma”, sofrer delírios de grandeza, virar galo-de-briga, jactar-se, inflamar-se de orgulho/vaidade, etc dentre tantas insensatezes e arruinamentos típicos dos iludidos.

Frise-se que elogiar e ser solícito são, objetivamente, ações próprias de amizade. Contudo, a amizade demanda, de forma inegociável, o elemento subjetivo inexistente na bajulação: a franqueza. Ou seja, o amigo efetivo elogia o elogiável, censura ou adverte até duramente o censurável ou condenável do amigo e por critérios objetivos (sinceros, ao menos), e não para “meramente agradar, validar ou aprovar”. 

Sem qualquer exagero, o amigo é o maior “guardião da lucidez” de alguém sobre si próprio, ou simplesmente não é amigo. Plutarco menciona o amigo como o nosso “redutor dos excessos do orgulho”. Exatamente por isso, amizade é forma de amor e não de poder, como sói ser a bajulação.

O bajulador – que de amigo só tem as vestes – rouba do bajulado algo de proveito essencial da interação humana. Diz Plutarco que o bajulador “(…) está sempre em oposição ao conhece-te a ti mesmo, introduzindo o engano em cada um com relação a si próprio e a ignorância de si mesmo”.

São tão predatórios os bajuladores que os adversários, rivais ou até mesmo inimigos, se declarados, têm mais serventia no que respeita às correções de rumo e quebra das ilusões. 

O filósofo romano esclarece que a assunção das inimizades é meio que instiga os homens a “permanecerem sóbrios em sua vida e se manterem afastados da fraqueza de caráter” e que “(…) frequentemente, uma crítica lançada pela cólera ou pela inimizade cura um vício da alma ou porque era ignorado ou era negligenciado”. 

Alcançar julgamentos objetivos, justos e razoáveis de si, extirpados de orgulhos, egos e ilusões, é fruto colhido na travessia ao menos razoável da maturação; e “críticas”, incluídas as antipáticas, vindas da alteridade benevolente são indispensáveis. 

Importante destacar que o bajulado, muitas vezes, não é mera vítima passiva do achaque casual dos bajuladores. Ele, por ingenuidade difusa (associada à baixa autoestima) ou mesmo perversão (associado à vaidade), pode ser um pidão ativo da lisonja e manifestar hostilidade a críticas, mesmo as razoáveis e benevolentes. 

Nessas situações acima, passa-se mesmo um impulso de ojeriza contra a franqueza, num esquema de paralelismo entre o exterior e o interior.

Plutarco assentou também que “cada um de nós é o maior bajulador de si”. Disso, segue-se óbvio de que quanto mais alguém se auto bajula ou manipula, mais ele tende a ser bajulado ou manipulado externamente. 

Aquele que se bajula é, sem exageros quaisquer, pessoa de caráter íntimo masoquista à busca de um (ou mais) bajulador(es) externo(s), que fará (ão) papel de seu (s) sádico (s).

Os malevolentes, sádicos, sempre entendem a fraqueza alheia – e o jogo interno que o bajulado faz consigo –, seja por baixa autoestima ou por vaidade (às vezes difíceis de ser discernidas uma da outra ou mesmo amalgamadas) e é aí que está a chave do poder. O bajulador anestesia essa fraqueza, sem, claro, que o bajulado tenha melhorado qualquer dos elogios, aplausos, conselhos, etc. Aliás, vai mesmo piorar, desde ser parasitado até esfolado.

Hans Christian Andersen exibiu, com fina mordacidade, pelo singelo clássico “As roupas novas do imperador” duas feiúras:

  1. a imensa eficácia ilusória da bajulação de uns picaretas sobre um rei vaidoso, que se permitiu ir até o cúmulo do ridículo;

  2. a solidariedade das pessoas pendente mais para os bajuladores que para o bajulado! Afinal de contas, tão-somente o menininho teve a franqueza de não aplaudir e dizer a nudez do rei como ele a via. Toda a turba jogava o teatro de “puxar o saco do rei”.

São poucas as pessoas “não bajuláveis” e só essas são pessoas propriamente livres.

As turbas estão tanto sendo achacadas por bajulações múltiplas, até grotescas e institucionalizadas (a exemplo, o “politicamente correto”), quanto bradando, ainda que inconscientemente “bajula-me sem parar, por amor!”.

Menor ainda é o número de pessoas que não bajulam em absoluto, pois, no mínimo, se tornam personae non gratae e hostilizadas em quaisquer domínios sociais, incluídos os de trabalho, as escolas e mesmo no âmbito das famílias, tornando a vida prática quase impossível.

O mundo tem a mania incorrigível não perdoar os francos, pois, mesmo sob vestes de amigo, o mundo só dá e só quer mesmo é receber lisonjas.

SP, 22/11/21

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