Platão, Suas Dores, A Hipocrisia Social Invencível e o Diálogo A República

Platão, Suas Dores, A Hipocrisia Social Invencível e o Diálogo A República

Artigo do Vicente Tolezano

O adágio popular que diz que “uma ostra que não foi ferida não produz pérolas” carrega muitas verdades. São, sim, muito os esplendores artísticos, filosóficos, eruditos, etc… que são frutos efetivos da maturação de dores.

Platão (428 – 348 a.C.), um dos maiores gênios da história, homem cujas reflexões nos iluminam há 25 séculos (e seguirão iluminando) era também um homem deveras dolorido.

Suas dores, aliás, são certas sementes de que brotou a robusta árvore de suas reflexões e é bastante evidente a conclusão, ainda que contra factual, de que não fossem as tais dores, frutos tão nutritivos não teriam vindo à luz.

Duas das dores agudas factuais, biográficas do nosso autor, foram bastante registradas em suas obras e são associadas entre si: a) o estado generalizado de corrupção em Atenas; b) a injustiça absoluta feita contra Sócrates (470 – 399 a.C.), num julgamento fraudulento do começo ao fim.

Como podiam tanta maldade e a mentira manifestas prevalecer sobre a virtude e verdade também manifestas? Essa questão era objetivamente constatada por Platão e fonte dos aludidos “espantos dolorido”, os quais foram elaborados num projeto filosófico, sem, claro, ter-se dessensibilizado.

O mestre maior de Platão, tanto na instigação reflexiva-intelectual quanto como exemplo vivo de virtudes morais, Sócrates, propunha uma explicação sobre a adesão ao mal que não se sustenta solidamente e mesmo carrega doses generosas de ingenuidade.

Segundo Sócrates, o mal, em todas as suas formas, seria a ignorância do bem, tal que se o mal é praticado é porque não se conhece o bem. Por sua vez, se o bem fosse conhecido pelo agente maldoso, este não faria o mal.

Tão fiel foi Sócrates à sua crença ingênua que, mesmo condenado num julgamento manifestamente fraudulento, arrogou a si a responsabilidade de não ter tido capacidade de bem demonstrar as inconsistências da acusação! Sim, considerava real a possibilidade de “convencer hipócritas”!

Platão, a despeito de toda preservação do mestre, não se contentou tal simplismo explicativo, manifestamente insustentável.

Elaborou, pois, o gigantesco pensador ateniense, uma amplíssima filosofia, com fronteiras de conteúdos bem mais largas que os temas morais (em que Sócrates estava centrado), mas integrava os temas morais com dimensões da física, da política, da metafísica, da cosmologia, da estrutura da cognição, da natureza da linguagem, etc…

Vamos repetir que no centro de todo esse vasto “universo filosófico”, o sol radiante de energia movente era as dores aludidas. Há de haver explicação para tudo que existe, inclusive para os absurdos.

Na famosa Carta VII, plena de relatos biográficos, Platão indica suas frustrações de viver numa pólis intensamente corrupta, logo ele que, desde a juventude, almejava o exercício da vida pública com ânimo verdadeiramente altruísta.

Ele não foi concretamente molestado pelas tiranias presentes em Atenas, eis que era de ascendência aristocrática, repleto de consanguíneos poderosos, mas corruptos.

Tentou dar vazão aos intentos altruístas em terra estrangeira – Siracusa – tendo vivido e atuado na corte de Dioniso, onde fez esforços para educar o monarca em bases filosóficas.

A perversão social siracusana, por sua vez, não discrepava da perversão ateniense. Platão padeceu inclusive de aprisionamento e “por pouco” não teve destino mundanamente desgraçado como o de Sócrates.

As situações concretas de prevalência de vício e perversão nas praças públicas de Siracusa e de Atenas, contudo, não são “só coincidências pelo léu do acaso”. Há padrões de movimentos ordenantes e constantes das vidas social e individuais. É o desafio à inteligência filosófica capturar esses padrões.

A humanidade é legatária do tesouro platônico contido na A República, diálogo ficcional protagonizado por Sócrates e cujo tema central é a questão ampla da Justiça, da sua natureza, das suas raras possibilidades, dos meios de educação para ela, dos modos justos de viver e dos modos de viver bem a despeito do padecimento de injustiças.

Platão desenvolve um tratamento paralelo entre a justiça num homem (precisamente, na alma de um homem) e a justiça numa cidade, eis que é mais fácil ver as coisas “na escala de uma cidade”.

O pressuposto, aliás muito correto, aí envolvido é que as cidades são estruturadas como modelo ao que hoje chamamos de “psiquismo coletivo”. Nesse sentido, bem conhecer os modus e de uma cidade justa, bem governada, ou injusta e perversa se presta a iluminar o conhecimento das mesmas tensões num indivíduo e vice-versa. Cada cidade tem divisões internas e cada alma também é partida internamente.

Em apertadíssima suma, Platão demonstra (e convence!) a grande prevalência da praça pública pela injustiça sim.  Afinal, em termos materialistas, dar justiça, mesmo dentre as muitas variações de sentido do termo, é considerado desvantajoso.

Como exemplo, vejamos uma mentalidade que todos os leitores conhecem: “qual a vantagem, afinal, em pagar o preço justo de alguma coisa? O vantajoso é receber mais do que uma coisa vale”.

É claro que é mais “vantajoso” não dar justiça e sim recebe-la. Mas “mais vantajoso ainda” é jamais ser justo, mas sempre ter a “aparência de justo”. Afinal, quem “parece justo” goza de alguns prestígios e poder social, ainda que efetivamente não seja justo.

Quem, por sua vez, “é realmente justo”, mas não tem a aparência de justo é socialmente desprezado. Dizer “mundo” e dizer “mundo de aparências” é praticamente dizer sinônimos para Platão, o autor do Mito da Caverna, aliás, mito que é parte integrante da A República.

De certa forma, a pessoa realmente justa também não está exatamente ocupada em “jogar para a praça pública”, tal como foi o caso de Sócrates. Está presente aqui um senso íntimo com a ideia de “santidade”, considerando-se Santo como aquele que “venceu o mundo”.

A praça pública é lugar ordinário de aparências políticas, de poder, de disputas, rixas múltiplas e disfarçadas sob infinitas roupagens. Haverá, claro, um punhadinho, mas só um punhadinho, de justos (e santos) diluídos na multidão de “sedentos por aparência de justiça”, mas desinteressados em justiça propriamente dita.

Vale o registro nesta altura, dos “toques de chacota” de um contemporâneo de Platão, Diógenes de Sinope (404 – 323 a.C.), que dizia perambular o dia todo por Atenas na busca de um homem honesto, mas jamais lograva o encontrar.

O próprio Diógenes enunciava outra luz, ainda que vestida em tom provocativo de irreverência, a de que “era uma criatura do cosmos e não de uma polis em particular”.

Essa provocação de filiação cósmica e desprovido “filho do meio social” ou (cosmovisão deprimente que está em voga correntemente) ou de cidadania carrega um senso agápico, que denota “amor ao todo indeterminado, mas determinante”, ao divino, ao transcendente, etc… e de tal forma que só a existência desse amor justifica o amor philia, relativamente a pessoas e bens concretos.

Para as tradições cristãs, esse amor agápico é o Mandamento Um do Decálogo – “Amar a Deus sobre todas as Coisas”.

A solução para as dores existenciais, a solução para a vida boa, a solução para as próprias dores concretas de que Platão padeceu é ser justo, ser virtuoso, ser produtivo, enfim, ser Santo. Há uma gravidez aqui do que seria explicitado no Evangelho de Mateus sobre “acumular tesouro só no céu” não nas praças públicas.

O diálogo A República, além de apontar a inevitabilidade da hipocrisia perversa e injusta da praça pública vai discorrer sobre as constituições dos tipos de carácteres humanos (em parte natural e em parte decorrente de esforço próprio), inclusive sobre a constituição do “caráter dos justos” (dos virtuosos, etc…), entre tantos tipos de carácteres mais parasitários, mais predatórios, etc…

Não é possível “alguém ser justo de repente” e também “de repente” mudar a chave de justo para injusto, de corajoso para covarde, etc… Nós somos um padrão de caráter que constituímos paulatinamente ao longo da vida, num processo que passa por ordenação de afetos do corpo, da imaginação, da inteligência, dos hábitos, etc…

O simplismo socrático não alcança esse senso que Platão alcançou de que há tipos de carácteres humanos e tal que “conhecer o bem é condição suficiente para o cumprir” só e só se o “caráter dessa pessoa que conhece já é justo”.

Uma pessoa de caráter justo pode até praticar injustiça por ignorância e é “pidona” de aprendizado.  Contudo, às pessoas de caráter injusto, é totalmente irrelevante saber o que seja o bem, simplesmente porque ela não reflete sobre isso.

São indispensáveis, obviamente para bem viver a vida: a) saber ler carácteres humanos; b) não nutrir vãs esperanças da Praça Pública; c) ordenar a constituição do próprio caráter, inclusive, única via de “mitigação das dores de existir”. O diálogo A República ajuda muito à iluminação dessas questões.

A toxidade da Praça Pública também é recorrentemente denunciada na filosofia moderna (Schopenhauer, Nietzche, Bukowski, etc…), pois, afinal, repetimos sem cansar, é uma constante perene.

A discrepância plena da abordagem platônica consiste em que o pendor moderno, sob inércia da cosmovisão de filiação do meio, instiga, de certa maneira, a um senso de ressentimento social, revolta, utopias por uma sociedade perfeita, etc…

As perspectivas platônicas não condizem com ressentimento ou equivalentes. Elas carregam o ônus de constituição do próprio carácter justo (e feliz) muito predominantemente sobre o próprio sujeito. A degradação do meio não é motivo para negá-lo ou lamuriar (Platão chama isso de covardia), mas é motivo para tonificar um vínculo agápico.

É bastante frequente apontarem Platão como utópico por ter “idealizado a cidade perfeita” ao longo de A República, o que, de fato, fez “em termos literais”, mais precisamente “na superfície literal”.

No sentido, minimamente bem interpretado, contudo, e com vênia de tantos intérpretes em sentido contrário, Platão não propõe e nem estimula qualquer esperança nalguma “cidade perfeita”, mas em “alguns homens de constituição de caráter muito justo”. Ele trabalhou, repetimos, com a escala da cidade para “falar, acima de tudo, sobre as possibilidades de indivíduos”. Ela cunha a metáfora do Homem Ouro, como aquele que vive no meio social, serve ao meio social, mas é o que menos se deixa influenciar pelo meio (tal como o ouro é o metal mais resistente à oxidação).

Platão em geral, mas destacadamente o diálogo A República é guia para iluminação da vida, para mitigação das dores de existir, para nutrir fé lúcida, para aguçar a inteligência, enfim, para saber plantar semente de virtude em solo bom.

Este articulista abona o asserto da professora Lúcia Helena Galvão de que se, tirante livros sagrados, só houvesse um livro para ser lido ao longo da vida, que este livro fosse A República de Platão.

Eu li A República a primeira vez aos 30 anos e “gostei” de certa forma da obra. Na maturidade dos 50 eu reli. Aí, “passei a achar que entendi”.  Não só reli o texto várias vezes, como o digitei em minha versão própria, linha a linha as suas 800 páginas. Foi uma imensa bondade que fiz para mim mesmo.

Em breve, aqui pela Casa da Crítica, faremos eu e o amigo Dr. Joathas Bello filósofo de “prateleira mais alta que a minha” um curso sobre A República, de Platão, curso extenso, sem viés acadêmico formal e com viés de educação existencial.

Mais Platão sempre!

Vicente Tolezano, São Paulo, 15 de março de 2025

Categories:

8 comentários

  1. A importância do texto do professor Vicente Tolezano está em trazer A República como parte dessa grande orientação que entendemos como a Paideia grega. A formação do caráter exige muito do intelecto aliado a uma sensibilidade que é capaz de sentir as necessidades dos cidadãos. A formação do caráter exige ambas virtudes em um estado de constante atenção e aperfeiçoamento.

  2. Grace Teles disse:

    Ual Vicente!!! Considerações lúcidas a respeito da Praça Pública!!! O Mito da Caverna ainda e sempre a nos retirar da ignorância e de nossas zonas de conforto…Amei!!!

    • Fátima Silva disse:

      Quanto mais eu leio o que escreves, ou te assisto, mais me convenço da minha própria ignorância.
      E me sinto tola, às vezes. Pq ainda perco meu tempo na “praça pública” da rede social.

  3. Maria Gabriela disse:

    Querido Professor e Amigo Vicente.
    Sua escrita me encanta. Tenho pra mim, saudade , quando leio um texto seu.
    Este Texto profundo, crítico deveria ser obrigatório para cada ser humano encarnado.
    Como sabe, creio que há um saber transcendental – talvez quando Sócrates falava destes ignorantes, alcançava aqueles incautos homens que só viam a realidade na superfície e não profundamente
    Grande abraço
    Maria Gabriela

  4. Fernando de Melo Andrade Duarte disse:

    O adágio calhou como uma luva para sintetizar a nobre atitude de Platão, que não se paralisou diante de suas dores, mas as utilizou como força motriz de sua produção, da qual somos afortunados legatários.
    A perseverança de Platão, na disseminação de suas idéias de virtude, derivam de sua filiação agápica. Sem dúvidas, essa postura também nos é uma fonte de seu legado.

  5. Helia Dias disse:

    Estimado professor Vicente, sou uma entusiasta do seu trabalho. Parabéns, sua análise trouxe luz, conexão com o contemporâneo, seu artigo enriquece nosso entendimento de Platão e é um convite a refletir sobre a sociedade que vivemos hoje. Estou diante de mais uma contribuição sua excepcional.

  6. Renata Mathias de Lima disse:

    Pavlov dizia: “para aprender, leia os antigos.”
    Seu artigo promove esta conversa com os mortos, Vicente, tão urgente e necessária. Falar com os mortos, acima de tudo os Clássicos, deveria ser obrigatório. Muito obrigada pela oportunidade de reflexão.

  7. Allan Barbosa Nagy disse:

    De fato a República de Platão é uma obra integrada, tem uma habilidade de desdobrar das pequenas coisas até as proporções maiores como uma república. Este sistema de conhecimento, integrado por uma alma, intelecto, ética e etc… funciona em perfeição ontológica e em macrocosmo.

    Platão curiosamente, me aparenta ter uma didática bem sutil e confortável (uma característica que não encontro em Aristóteles, que também é indispensável).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *