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Autor: Vicente do Prado Tolezano

10/01/2020

São 3 os tempos: cronológico, cíclico e primordial. São 3 também as atitudes perante o sagrado: dessacralização absoluta (quase impossível), sacralização débil/inconsciente/substituta e sacralização propriamente.

O primeiro tempo é o tempo da matéria e, muito propriamente, não existe senão como um conceito da percepção e quantificação do movimento das coisas, num esquema em que não é verdade que o giro da Terra sobre si gasta 24 horas, mas sim que o dito giro é que é a convenção de 24 horas.

Ainda que o exemplo invoque “giro da Terra”, a perspectiva cronológica é linear, com contagem por numeral ordinário ad infinitum, tal que o passado passou de forma bruta e com morte absoluta. É o piso dos tempos.

O tempo cíclico, a sua vez, permite certo retorno do passado, temperando a brutalidade do tempo cronológico. Nenhum novo verão/inverno/outono/primavera é absolutamente de todo novo e eles nos impregnam senso de reinstalação para viver mais, mas também, em certo sentido, em tempo já vivido.

Mutatis mutandis, com novo amor, novo emprego, novo projeto, etc., passa-se o mesmo. Todo réveillon evoca uma “renovação” das expectativas do porvir, mas com a luz de que outras renovações suceder-se-ão.

É próprio do movimento em ciclo que todo ponto será novamente repassado e muitas vezes. Brota-se um início de percepção de “qualidade” do tempo. A percepção do tempo cíclico suaviza o peso da morte cronológica e até fisiologicamente outorga moderada sensação de expansão vital.

O tempo linear é tempo absolutamente dessacralizado; em si mesmo é profano. A quintessência do sagrado é justamente uma erupção qualitativa que “discerne uma matéria de uma matéria homogênea” fora do senso exclusivo de quantidade. Dessa forma, uma montanha, rio, pedra, pedaço de pão, estátua, são “sagradas” em contraste a montanha, rio, pedra, pedaço de pão, estátua, meramente “profanas” e por critério não material, mas místico, portanto, por uma heterogeneização qualitativa não física.

A percepção do tempo linear é fenomênica (material, das coisas e mesmo das pessoas tomadas como coisas!) e não condiz com a penetração de busca de sentidos subjacentes ou transcendentes.

O Bruxo do Cosme Velho, vulgo Machado de Assis, foi certeiro: “o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário[1].

A percepção do tempo cíclico sobe um degrau na “diferenciação qualitativa”, senão a percepção retentiva/comparativa externa e senciente de “renovação” não teria como ser o caso. É a antessala da experiência sagrada, acessível mesmo a pessoas não religiosas de forma difusa.

O caso do entusiasmo do homem não religioso para com o réveillon é exemplo. Ele acha que retoma a “esperança”. Em termos muito precisos, contudo, esperança é virtude só teologal, acessível nos seus sentidos próprios apenas ao homem religioso. O que se passa com o não religioso no caso é, precisamente, um aumento de “expectativas” para com o devir no mundo, distintas da dimensão da “esperança”, pois, esta só é “para além do mundo”. 99% das vezes que se fala coloquialmente em “esperança”, cuida de “expectativa”, tratando-se um termo teologal como se mundano fosse.

Este articulista abona a tese de Mircea Eliade (1.907 – 1.986) de que muito raramente pode haver vida absolutamente dessacralizada/areligiosa mesmo em ambientes agudamente secularizados. Claro que há negação da transcendência, mas efeitos seguirão a ser o caso nem que seja por transferência inconsciente.

Machado de Assis foi magistral em anotar essa “eterna contradição humana” no conto a Igreja do Diabo retratando que, mesmo aos negacionistas um mínimo sagrado urge nem que seja às escondidas. Quanto a mecanismos de transferência, o exemplo do réveillon serve, sem embargo, dos milhares de casos de idolatria presentes a um palmo de distância de qualquer um.

O tempo primordial (também chamado de kairós), por sua vez, sobe efetivamente a escada da experiência do sagrado, acessível exclusivamente ao homem propriamente religioso, pouco relevando a tradição religiosa e assim é desde as sociedades arcaicas inclusive.

A senciência da experiência sagrada do tempo primordial chama-se êxtase ou elevação. O estado da consciência, nessa oportunidade, chama-se transe. Essa experiência plena do sagrado não tem ressaibo de mero fluxo nem de recomeço, mas de regeneração, de uma totalidade quiditiva atemporal. A vicência do sagrado não está num aqui ou num aí, mas derramada e fusionado no centro do mundo. Nessa situação, não há passado nem futuro e, logo, nem recomeço ou fim. É propriamente o cume ontológico de ser na própria geração infinita. Na mística Cristã, chama-se de comunhão (ou comunhão unitiva) essa experiência de entrega e fusão teologal.

Mircea Eliade registrou que, para anunciar a plenitude do sagrado, “as diversas tradições religiosas utilizaram abundantemente o simbolismo da ponte perigosa ou da porta estreita”. Na vivência religiosa efetiva, evidentemente, a passagem ao sobrenatural não é espacial. A metáfora alerta a um senso de inacabamento da vida material, cuja conclusão é transcendente num outro mundo, que, mesmo outro, misteriosamente sustenta ou ordena este, eis que integra o cosmos, mas cosmos, a sua vez, ultrapassa o senso de mero lugar.

Atos de deliberação por fé, entrega à caridade, controle por esperança, tudo em estrito sentido de adoração teologal/sagrada, já outorgam efeitos sencientes de regeneração atemporal, prenunciando um mínimo de gozo de infinitude, lembram das passagens pela ponte ou porta estreita e tonificam mais a vitalidade que a simples “renovação do tempo cíclico”.

Corrobora, dinamiza e ordena a experiência sagrada o rito religioso/litúrgico, provendo centelhas abrasivas junto ao opaco profano e com a senciência de que estamos a tratar e em nível propriamente espiritual, com êxtase, ou seja, para além de mera disposição de limites meramente psicológicos como euforia, excitação, etc., coisa que, por vezes, é difícil de discernir.

O pináculo da tonificação ritualística dá-se no Templo; ele, em si, já é uma porta à ponte da travessia dos tempos, mas a vida pode ser ritualizada no cotidiano simples: oração, louvor prévio a uma refeição, ao ato de dormir, à iniciação da iniciação da puberdade, da epifania de adulto e por aí vai toda a sabedoria unitiva, existente desde as sociedades arcaicas, relembrando as consciências da atitude temporal.

Vida desritualizada é vida dessacralizada, Império do Cronos e da Quantidade. Materialismo intravenoso!

Todo acesso, mesmo precário, à transcendência como experiência de tempo primordial ao tempo transcendente, carrega em si uma morte em relação ao profano (por isso assusta), no sentido de menos valorar o tempocronológico e mesmo o “lusco fusco” cíclico. A regeneração primordial é o nosso sumo ontológico, sagrado, do ‘eu’ que vive mais em outro tempo, no sentido de mais fora do tempo num esquema de antecipação do tempo sem começo nem fim.


 

 

Um comentário

  1. Tamara Mello disse:

    A materialização é grande distração e desafio.
    Que sonho uma sociedade orientada para o tempo primordial. Como lírios no campo, tempo de Deus.

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