Autor: Vicente do Prado Tolezano
É difícil conceber liberdade mais fecunda que a do que o autodidata.
O livre é aquele que, claro que dentro das devidas proporções, se basta; ele é por si, sem dependência de vínculos existenciais com outros (“relação de autoridade/poder”).
Ser livre não é ser pessoa sem regra. O próprio termo “autonomia” quer dizer “regras alcançadas por si” ou com “regras próprias”. Liberdade, afinal, não se confunde não apenas com a não dependência de outros, mas também não se confunde com a erraticidade e tampouco com anarquia.
Pessoas livres, frise-se, são bastante controladas, na perspectiva de controle propriamente essencial – o controle sobre si como uma categoria metafísica de forma.
As pessoas não livres, por sua vez, ou recebem controle externo (como conformação) ou ficam erráticas/caóticas (desinformado), como uma categoria metafísica de mera matéria.
Não nascemos livres. Aliás, somos a espécie mais dependente que há não apenas porque somos a única que se defronta com o “dilema da liberdade”, mas também por conta de que até mesmo a nossa animalidade é a mais dependente de todas, dada a insuficiência meramente instintiva para a vida humana.
Nossa questão existencial é fazermo-nos livres no curso da vida, como por vários nascimentos espirituais sucessivos e progressivos sobre o nascimento orgânico, ao qual não demos causa. Esse processo se chama de perfectibilidade ou maturação.
Na perspectiva propriamente cognitiva, a maturidade é exatamente saber aprender por si, seja por (i) seleção própria de fontes, seja por (ii) capacidade de colheita direta dos dados da realidade, seja por (iii) deliberação própria dos objetos de interesse e a (iv) capacidade de refletir e sintetizar sucessivas vezes tudo isso.
O amadurecido como acima apontado é o AUTODIDATA.
PLATÃO (428 – 348 a.C.) chamava o que ora apontamos como autodidata como o “homem de espírito dialético”, aquele que saiu sozinho da caverna, que supera estranhamentos consigo na medida em que progride na visão “das cores” e que, ao cabo, resta um “estranho” aos seus ex-colegas de cárcere, conformados às sombras externas.
O saudoso Pierluigi Piazzi (1943 – 2015) afirmava amiúde que a função única de escola haveria de ser o estímulo a essa condição de autodidatismo. Tinha toda razão nessa, aliás, obviedade.
Agregamos que mais que “escola”, tudo o mais que seja sadio deve concorrer para a estimulação libertária.
Uma família, e.g., que até acolhe a prole mas inibe o natural vôo para fora do ninho perverte a razão de ser da própria família, que inclui educar existencialmente no sentido amplo para a liberdade externa e não para o “parasitismo”.
Na perspectiva cognitiva, um paralelo apropriado ao parasita afetivo/existencial/mimado é o ANALFABETO FUNCIONAL, o tipo cuja inteligência é só postiça.
Analfabetos funcionais podem cumprir algumas funções de superfície ou periferia, mas nunca se basta, pois ou não entende/significa o que faz ou depende plenamente da ordem/mando/instrução ou outras formas de “nomia” para com elas se conformar.
Alguns analfabetos funcionais até sobem alguns degraus da escada, mas só mediante “chutes no fundilho”, os quais, se cessados, implicam a parada imediata e estacionamento na condição de parasita.
O autodidata e o analfabeto funcional são os opostos extremos entre si. Um tem princípio de ação em si e o outro é só inercial (reativo ou parasita) e aí reside o discernimento próprio: atitude ou caráter de agir x caráter de parasitar.
Afirmamos que as atrofias cognitivo-intelectuais dos analfabetos funcionais, por tantas vezes, não são propriamente “o” problema, mas, mais acuradamente, “efeito” do problema essencial, que é a renúncia de liberdade. É mais ou menos o caso da pessoa meio cega porque deixa as suas próprias pálpebras só meio abertas.
A renúncia à liberdade (por via de consequência, da razão) foi profundamente examinada por ERICH FROMM (1.900 – 1.980), que inclui esse tema na sua tipologia de carácteres humanos, particularmente claro que o analfabeto funcional se encaixa no caráter de autômato, também dito caráter dependente ou simbiótico, cujas características mais profundas são i) medo de solidão, 2) sentimento de insignificância e 3) sensação de impotência. Esses tipos nunca maturam, em paralelo a que Aristóteles (385 – 322 a.C.) predicava ao servo, que é aquele que não consegue desenvolver virtudes.
Ler um livro, estabelecer uma interpretação própria, por conta de articulação intelectiva própria sobre o que foi proposto pelo Autor, pelo que foi pressuposto por ele, mediado com o que se concorda/refuta e acrescenta são atos não só de “inteligência”, mas são atos de “decisões semânticas”.
O analfabeto funcional não alcança decidir e nem pisa nos solos semânticos. Afinal, analfabeto funcional “funciona mas não significa”. Toda sua perspectiva é de instrução/ordem para fazer alguma coisa, nem que seja de um chefe/autoridade imaginários.
O analfabeto funcional pode ter passado anos a fio nos bancos escolares e quedar-se só passivamente.
São muitos os autores (Pascal Bernardin, John Gato, Mortimer Adler, entre outros) que indicam que a escolarização extensa pode não só ser divorciada da educação semântica como pode só se prestar a ajudar na camuflagem de várias auto sabotagens da liberdade individual.
Quem não conhece diplomados desprovidos de qualquer significação e evasivos ao menor suspiro?
Quem também não conhece irmãos de mesma família, recebedores de mesmas condições sociais, materiais e afetivas, mas um bate as asas e outro se acocora e não por problemas “neurológicos”, mas só por atitude mesmo e tantas vezes acobertadas essas por pseudo racionalizações?
Aí vem a pergunta: como ajudar um analfabeto funcional?
Em muitas vezes, a pergunta acima é a mesma pergunta de como ajudar aquele que renuncia da sua liberdade, o que, nem de longe, aspira por ser por si e insiste, insiste e insiste mais mais e mais nos jogos subterfugiosos múltiplos?
É evidente que não se vão “resolver” tantos e tantos casos pois tinham razão BERTRAND RUSSEL (1.872 – 1970) quando asseverava que a maioria das pessoas prefere morrer a pensar e SIGMUND FREUD (1.856 – 1.939) ao afirmar que a maioria das pessoas não quer realmente a liberdade, pois esta implica responsabilidade.
Libertar quem decidiu profundamente fugir da liberdade equivale a jogar pérolas aos porcos. Eles pisarão sobre elas e se voltarão ao doador das pérolas, conta a passagem evangélica.
Outros tantos casos há em que a libertação será árdua, mas possível.
Na nossa própria prática de mentoria, constatamos avanços de vários mentorandos inicialmente queixosos de gargalo na cognição quando trabalhamos a ressignificação das suas “relações de autoridade” ao longo da vida.
Ou seja, confirmamos o gargalo de cognição como efeito do gargalo da liberdade. Por vezes, as pessoas assumem condição de autômatos por meros erros/desordens conceituais, os quais, se reordenados, permitem a retomada do fluxo de progressão existencial, incluída a retomada da inteligência.
Claro que os casos mais fáceis de analfabetismo funcional a ser superados são os de atrofias cognitivas decorrentes de letramento e/ou numeramento precários, sem nexo direto de um psiquismo auto sabotador.
Nesses casos, uma dificuldade que costuma surgir é um senso de vergonha que pode fazer a pessoa resistir em retroceder para, só após, progredir. Superada a vergonha, há trabalho por fazer e este costuma vingar.
O caminho de solução nos casos acima implica voltar ao básico, à apreensão de, por exemplo, análise sintática, leitura de crônicas, de poesia, composição de textos básicos, prática em manuseio de dicionários, etc …
Sem voltar aos pisos primeiros, não é possível subir o prédio sem que, ao menos, ele fique torto.
Já atendemos a diplomados em universidade e gente até com cargos razoáveis em organizações, mas que jamais tinham lido livros! Escrevem até, mas em “escrita funcional”, sem conseguir incluir articulação, coordenação, conexão entre ideias ou discernir tensões semânticas. A vasta maior parte da força de trabalho do Brasil é assim ou pior.
Se a pessoa tiver a humildade de retomar o básico que ficou negligenciado, há como avançar, como já dissemos, e até buscar um paradigma de autodidatismo. A propósito, este articulista tem 51 anos de idade e declara publicamente que carregou traços de analfabetismo funcional até os 34 anos, ocasião em que era advogado, dono de escritório e com 2 pós graduações, mas a posse de “fineza semântica” não tinha toda estabilidade devida.
Urge, como já dito, estimular a liberdade e desenvolvimento das pessoas, mas com a atenção de que estimular é só estimular mesmo, tal como abrir uma porta convidar a entrar, sem, contudo, empurrar para entrar. Todas as experiências de educar à fórceps ou por bajulação só alcançam simulacros como os analfabetos funcionais são.
Deveria ser óbvio que liberdade não se impõe. Autodidatismo, por sua vez, sempre foi coisa rara e louvável e nem a universalização das escolas fará ele ser regra, senão de exceção nos meios do parasitismo-analfabeto-funcional-servil-escapista.
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