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Autor: Vicente do Prado Tolezano
16/07/2019

A única certeza inalterável é a mudança, arguiu Heráclito de Éfeso séculos antes de Cristo, dando início à investigação racional-sistemática da natureza.

Sua frase que restou clássica expressa que “não se banha duas vezes no mesmo rio”, tanto porque o rio como também o próprio banhista já serão outros quando do segundo banho.

As verdades nos assertos heraclitianos são “verdades-de-superfície”, eis que mesmo que o rio e o banhista mudem objetivamente, seguem, num sentido, os mesmos em termos lógicos-identitários. Assim não fosse, não seria sequer possível pensar/dizer “esse rio e esse banhista mudaram”, já que há uma estabilidade objetiva no sujeito da oração e móvel é o predicado.

Ou seja, até para que algo mude, ele há de, num certo sentido, permanecer o mesmo, sem o que sequer seu movimento seria percebido, pois cuidaria daí não de uma mudança, mas de uma alteridade.

Tratamos com banalidade que uma pessoa já anciã cuide de ser a mesma pessoa quando neófita, a despeito de tantas mudanças nela. Isso evidencia não apenas a possibilidade de mudança com permanência, mas propriamente a necessidade de permanência para viabilidade da mudança.

Fossem os movimentos cósmicos, naturais e vitais puramente lineares, esse “aparente paradoxo da identidade” seria, em efeito, um paradoxo propriamente, implicando um mundo-não-mundo-contraditório-em-si, ou seja, uma impossibilidade ontológica. Urge, contudo, destacar que os movimentos cósmicos, naturais e vitais são essencialmente “cíclicos” e lineares apenas em percepções meramente marginais.

Exemplo clássico de movimento cíclico: a passagem das estações. Não será sempre verão, pois há de haver mudança e virá o outono, seguido de inverno e primavera. Mais precisamente, contudo, serão verões, outonos, invernos e primaveras. Em cada advento, cada estação é própria num sentido, mas, noutro sentido, é a mesma estação se repetindo.

Na perspectiva humana, o mesmo se dá. Amamos e como amamos a “novidade” e tratamos até com sarcasmo aquelas referências “às mesmices de sempre”, tal como se não inovarmos nos sentiremos mortos por tédio.

Tão forte pode ser o desejo do “novo pelo novo” que, não raro, se lança o “neo-velho”, ou seja, apenas mais do mesmo mas só com “pó de maquiagem de novo”. “Moda”, aliás, é apenas quase que só isso.

Também amamos – e como amamos – a “permanência”, aquela afeição a algo que nos é familiar quase como “desde todo o sempre e para sempre” e que nos dá senso de identidade-origem, sem o qual nos sentiremos mortos por insubstancialidade/vácuo.

Esse aspecto de tensão da vida tem eco desde as funções meramente instintivas, sendo o instinto tensional de “ninho-exploração” um dos mais basais dos viventes. Sem ninho não se vive e sem exploração idem.

Sob outro giro: para quem está num ímpeto irrefletido, a longevidade de uma tradição qualquer pode ser justamente aquele “que” que, por si só, lhe outorga valor e, igualmente, pode ser, também por si só, justamente o que lhe desvaloriza, tudo a depender se, no momento, esse alguém está em estado psíquico de “exploração” ou de “ninho”!

Tomada a questão na dimensão social, evocam-se conceitos de um falso dilema entre “ser reacionário” ou “ser progressista”, ambas posições meramente próprias de ilusão social.

É próprio do espírito sábio, amadurecido, a diminuição das oscilações entre os “estados subjetivos instintivos passionais individuais ou coletivizados”, ou seja, é “menos de estação”, menos de extremos e menos de política.

O excesso de exploração revela baixo comprometimento de vontades, uma pretensão de “criação do mundo” que distorce o senso próprio do EU, fraco de raiz. Por sua vez, o excesso de ninho revela covardia, num ponto em que também distorce o senso próprio do EU, que fica apegado. Ambos os excessos têm traços de imaturidade e de “evasão de si”.

Essa evasão se evita só pela afirmação do seu reverso, que é uma invasão no EU com efeitos imanentes-transcendentes pela mediania entre conservação e exploração que, na perspectiva propriamente humana, não se coaduna com mero movimento cíclico, mas sim cíclico-helicoidal.

Cada estação se repete segundo seu ciclo e não há estações novas para inventar; elas são só descobertas tais como exatamente são. A ação do homem maduro na mesma estação que se repete é que não pode ser igual, pois pode sintetizar suas ações da “mesma” estação anterior, evitando a simples repetição idiossincrática e com aperfeiçoamento das suas ações.

Essa “novidade” de atitude que é efetivamente o busílis. Ela que é exatamente exploradora. Ingressa na constância infra e intra-subjetiva e ruma à transcendência objetiva, “renovando” o próprio EU no chão firme da objetividade externa.

A clássica frase de Sócrates “conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses” bem elucida o fluxo sintético helicoidal que dizemos. Quanto mais se conhece, mais do mundo se pode conhecer, não só por acesso a novos objetos do mundo, mas pela aquilatada visão deles. Afinal, só tem galhos longos o que tem raiz funda.

Já somos, pois, essas potências de conhecimento, a despeito da ilusão das novidades tomadas como absolutas.

O helicoide, por sua vez, a quem não saiba, é figura com feição de círculo, cíclico sem fim, mas com alargamento de cada círculo sobre círculo. A vida bem ordenada, pois, repete os mesmos giros sobre giros, mas a cada vez com maior largueza. Isso é atitude nova, renovadora e de incremento vital, “mudança sendo o mesmo”.

“Progressismo” ou “reacionarismo” não são mudanças cíclicas, mas lineares e para baixo a despeito de qualquer abono social! Por isso, só iludem, mas para perceber tal sutileza já há de se estar sem um “mínimo de helicoide”.

Não sem razão, é frequente a ilustração do passeio de Dante iniciado com o escape dos giros em falso na floresta para a sua jornada em travessia nos círculos do inferno, passando pelos do purgatório e até os do céu em formato de movimento helicoidal, cada vez com menos ilusão em cada giro.

O Dante que começou era o mesmo Dante que subiu a helicoide mas, não era o mesmo Dante! Se a rota fosse linear … estaria queimado, não por luz, mas por fogo mesmo.


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