fbpx

CONCEPÇÃO DE CULTURA – ATUALIDADE DO HOMEM MASSSA DE ORTEGA Y GASSET

Artigo de Vicente do Prado Tolezano. 

Vige entre nós, hoje, um senso tácito de que TUDO QUE SOCIAL É, DE PER SI, CULTURA. Há até lei do estado carioca que declara que “FUNK é cultura (Lei Estadual 5.543/2009)”, cujo cheiro demagógico chega até o leitor.

O sentido reproduzido na dita lei, bem como em outros usos correntes do termo cultura como “mero estado” das coisas sociais como elas são, discrepa  bastante – e aí o busílis deste artigo – do sentido amplo, clássico e tradicional que se atribuía ao termo.

A semântica clássica, contida no termo CULTURA, evoca a noção de “CULTIVO”, ou seja, de uma MEDIAÇÃO humana ordenada sobre um fato bruto da natureza visando a um FIM.

Ínsitos aí também os sensos de MELHORAMENTO, REFINAMENTO, INCREMENTO, TRABALHO, etc.

Pense na etimologia da expressão “AGRICULTURA”, composta das raízes latinas AGRI (campo) e CULTURA (cultivo), e veja como fica clara a ideia de elaboração. Contrasta-a, agora, com as expressões opostas do EXTRATIVISMO ou até mesmo da PREDAÇÃO e observa com mais clareza ainda o sentido evocado.

No paralelo humano social, a agricultura é a cultura tomada na acepção de uma forma atenta, deliberada e progressiva, de mediar a vida para MELHOR viver, tudo por meio de uma acumulação, não apenas do horizonte social, mas, inclusive com perspectivas inter-geracionais.

Tal como para o bom plantio da terra se empregam como semente os melhores frutos, tal se dá no plantio do imaginário, das aspirações, e das práticas humanas, os melhores modelos acumulados historicamente sendo a “cultura” justamente esse “fluxo ativos de filtro e luz”.

Por conta dos tempos do Politicamente Correto, se tornou reprovável JULGAR, como se MELHOR ou PIOR não fosse o caso ou até mesmo como se toda a categoria ontológica da QUALIDADE não existisse.

A rigor, uma (pseudo) cultura que prega a abolição exagerada do JULGAMENTO QUALITATIVO é uma cultura degenerada para a PREDAÇÃO. Difere – e até para pior – do EXTRATIVISMO, o qual, nesse paralelo, são as meras fisiologias humanas.

Antes, o homem inculto, no sentido de ainda bastante bruto, ia à busca da colheita e caças diárias apenas pelas leis do desejo imediatos do corpo – aparatos instintivos. A sua dita “incultura” era porque não recebera alguma tradição pretérita que iluminasse como melhor caçar, como fabricar armas de caça, como arrebanhar animais, etc…

A priori, toda geração contribui com a  posteridade com a reflexão, registro e maturação de suas experiências vitais. 

Na concepção, objeto de nossa crítica, de que o “simples estado de coisas sociais” é de per si cultura, sem mesmo julgar se não se está diante até de um descaminho cultural rumo ao bruto, não apenas o FUNK é bem cultural, mas a pornografia também, idem a chulice em geral, a “cultura/indústria do crime”, situação do analfabetismo funcional, etc…

Nem tudo que seja real e mesmo socialmente aceito comporta um senso de “cultura” como advertência de iluminação à vida.

Esse fenômeno foi muito bem apontado há pouco menos de século (1929) por JOSÉ ORTEGA Y GASSET (1883-1955) na Espanha, particularmente na obra REBELIÃO DAS MASSAS.

O pensador espanhol chamava por “vulgo” ou por “homem massa” o inculto, aquele simplesmente fixado num certo “estado de coisas”, sem intenção de reflexão e/ou sem exigência sobre si mesmo quanto à progressão existencial, a despeito de ser expressiva, em termos gerais, a ascensão puramente material das pessoas.

Ortega assenta expressamente que “o característico do momento é que a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem o denodo de afirmar o direito de vulgaridade e impõe por toda a parte”. Essa “afirmação” se dá em multidões, mais precisamente, em multidões de homens genéricos. Somos bem convencidos que o tempo passado desde a edição da REBELIÃO DAS MASSAS mais confirma que infirma as observações orteguianas.

Sobre a ruptura de um senso de fluxo intergeracional, para a simples primazia de um senso de “estado”, Ortega bem observa que “é fácil formular a impressão que de si mesma tem nossa época: crê ser mais que as demais, e ao mesmo tempo sente-se como um começo, sem estar segura de não se agonia”.

Bingo! A quebra do senso de cultura, no sentido clássico que indicamos, é muito mais aflitivo que libertário, nada importando para as mentes lúcidas (das pessoas não massas) as “aparências em sentido contrário”. Não sem razão, deve-se aqui registrar que poucos anos avante das observações em lume, a Espanha se pôs num dos mais insanos abismos que foi sua “demoníaca Guerra Civil”. 

Quem rompe com o passado é arrogante e quem não visa contribuir para com o futuro é egoísta. A combinação desses dois aspectos é uma forma revolta e fúria. As massas sempre têm esse esquema de revolta e fúria…, ponto em que também Ortega foi escorreito. 

Se o foco da cultura é o “estado” e não a “ação dinâmica” isso não quer dizer que inexista ação, mas que a ação passa a ser de decadência, pois largada está às meras inércias defensivas, acomodativas, materiais, sem o elemento ativo que é a “vontade deliberada”, atenta, com elaboração lúcida.

Passa-se entre nós, brasileiros, um ascenso material também, mas igualmente decadência em vários patamares existenciais. Vide a própria questão da “linguagem”. A despeito dos grandes passos dados na universalização escolar, o contingente, universitários incluídos, de pessoas sem capacidade de letramento básico é gigantesco e majoritário ao ponto de se fazer pejoração social a quem cultiva e exercita a linguagem escorreita.

Veja-se que, no sentido ora trabalhado, a dita “cultura do analfabetismo funcional” não é uma “cultura” propriamente, mas apenas “um estado meramente inercial desprovido justamente de cultura”.

Se se avaliar pela perspectiva da “estética” em geral, o meramente “grotesco” é chamado de “cultura” e pelo simples fundamento de que “é assim porque muita gente faz assim”. O mesmo se diga sobre a amabilidade intersocial…

Diga-se, destarte e nessa ordem de ideias, que a cultura do grotesto é justamente um estado da falta de cultivo (cultura ativa) do belo. 

Fica claro ao leitor, já, o poder de “enfeitiçamento” de um “jogo de palavras”?

Aumenta a posse de bens materiais – de consumo -, mas não a “consumação humana”, que Ortega chamava de “altitude vital”, vício de abundância, a seu modo.  

A percepção dessa brutalização da realidade é amenizada pela “corrupção da linguagem”, particularmente com a corrupção semântica do termo “cultura”, que se esvazia da semântica de progressão elaborada, lúcida, para ser o mero “estado de coisas”, tal como que se manipula um afeto com “trocadilho de nomes”.

O monumental Platão (428 – 348 a.C.) já observara fundamentadamente na A REPÚBLICA que o que se passa na psique coletiva se passa na psique individual, mas que é plenamente possível à alma individual superar sua sociedade, por tantos autores chamadas de rebanho, e o nome dessa “força” é “liberdade”.

Ou seja, é possível CULTIVAR-SE, buscando, por si, a superação dos meros “estados inerciais” com nome de cultura até por força de lei, mas que não cultivam, senão cativam sensos de pertencimento, sectários, etc…, entre outras formas de pseudo compensação de não ser “dono de si”.

No limite nosso maior tesouro vital é o nosso senso de “perfectibilidade”, que é uma construção biográfica evolutiva reflexão sobre ela, ou seja, é um projeto de “cultivos” passados e colheitas sucessivas, em processos continuados e reparatórios igualmente sucessivos, sem “ruptura” de unidade. O drama da nossa liberdade é que o “simples estado ” não é, de per si, libertário, mas só a ação interarticulativa dos tempos vividos (social ou individualmente) mesmo.

Para concluir com Ortega: “o homem massa é o homem cuja vida carece de projeto e caminha ao acaso. Por isso, não constrói nada, ainda que suas possibilidades, seus poderes, sejam enormes.” E todo esse “não cultivo”, conforme anotado, se mascara sob um “jogo de nomes”. Ninguém é culto por um mero padrão de conformidade, mas sim um mero “homem massa”.

SP, 18/10/22

Vicente do Prado Tolezano é graduado em direito peça PUC/SP e Mestre em Filosofia pela Faculdade do Mosteiro de São Bento de São Paulo. Dissertou sobre a Metafísica de Aristóteles. É articulistas, palestrante, professor e diretor da Casa da Crítica e da Tolezano Advogados.

Tem formações complementares diversas na área da Gestão, Psicanálise, Mediação, Filosofia Clinica, Lógica e Argumentação e outras sobre a Alma Humana.









Categories:

2 comentários

  1. Vera Lucia Curtu disse:

    Difícil. Porque todos têm direito de simbolizar em seu próprio nível de conhecimento. Simbolizar é “nosso poder supremo e nosso limite natural”.
    Mesmo em quem acha que está inventando a roda há o impulso legítimo de simbolizar. Como administrar os dois aspectos?

    • Sempre simbolizamos e uma via áurea a tanto é a linguagem. A sua baixa elaboração implica uma simbolização mais precária. Teu comentário atenta a 2 aspectos: a) a necessidade de se qualificar no manejo dos signos-símbolos; b) a atenção a que os signos-símbolos, a sua vez, são fruto de um “ser” composto de cognição e experiências.
      O “agir segue o ser” é uma máxima de Aristóteles e que eu abono. Ou seja, no cabo, não urge meramente subir a simbolização, mas a essência.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.