Autor: Vicente do Prado Tolezano
É comum que de edifícios se façam maquetes. Por meio dessas, se pré-conhecem aqueles, tal que, quando há o encontro real com o edifício, até a sua percepção fica tonificada.
Por vezes, se fazem maquetes sem haver um edifício faticamente associado a elas, que, assim, se referem a um “prédio ficto”. Contudo, mesmo as “leituras” dessas maquetes tendem a tonificar as percepções de diversos aspectos de prédios existentes, ainda que não propriamente associados.
Estabelecida uma percepção (por meio direto, similitude ou ficção), disparam-se esquemas mentais/intelectivos de conceituação, classificação, comparação, interpretação e até de sínteses, totais ou parciais, do objeto com outros objetos, que, atentamos, podem ser fáticos ou fictos.
Ou seja, com a percepção nasce a leitura no seu sentido amplo em que “ler é pensar” e todo “pensamento é leitura”, pouco relevando se se lê um “texto” ou diretamente a “textura da realidade”.
O texto está para a textura da realidade tal como a nossa maquete estava para a concretude do edifício.
Ou seja, a leitura de textos presta-se para tonificar nossa leitura da realidade, seja quanto à percepção de conteúdos da realidade, seja quanto à assimilação e exercício do processo intelectivo, que, como adiantado, coincide com o próprio processo de bem ler.
Se o ato de leitura, contudo, se limita a um mínimo perceptivo como quem meramente recebe uma instrução/ordem ou mesmo uma singela comunicação desprovida da sequência intelectiva já aludida, cuida-se, acuradamente, de pseudo leitura, exatamente aquela que fazem os analfabetos funcionais.
Uma apertada definição de analfabetismo funcional pode ser: a leitura sem o pensamento, ou seja, um ato meramente material, sem envolver a dimensão espiritual da inteligência. Em terminologia mais especializada se diz ALFABETIZAÇÃO sem LETRAMENTO.
Alguém pode questionar a possibilidade de haver pessoas inteligentes (letradas) sem que sejam alfabetizadas e é certo que isso existe.
Não se perca de vista, afinal, que inteligência é uma dotação natural nossa e a escrita é um invento para tonificar a potência natural. Nos seus primórdios, a escrita inclusive era imagética e se estruturava por símile aos objetos representados, tal como a nossa maquete.
Há teses sóbrias de que até Sócrates (469 – 399 a.C.), o pai da filosofia no Ocidente fosse analfabeto. Doutra banda, é sabido que Guimarães Rosa (1908 – 1967) teceu seu tesouro literário ambientado nos sertões, pois o sertanejo, a despeito de analfabeto, é inteligente, eis que lê a realidade diretamente e por uma necessidade vital imediata. Pessoas sem inteligência morrem logo no sertão.
Em todo caso, o que urge destacar é que a literatura ocupa o primeiro lugar do pódium dos meios de estimulação e tonificação da inteligência.
Por exemplo, quem lê um romance clássico se depara com uma composição de perceptos, fictos, contextos, ordens de causalidade, intencionalidades por interpretar, subjetividades, perfis psíquicos, perfis de caráter, elementos culturais, mentalidades, espacialidade, temporalidade, etc …, tal como uma muito boa maquete da realidade.
Voltamos a salientar que a estrutura investigativa sobre o texto-maquete, (chamada nas escolas de interpretação) – consistente em perceber objetivamente todos os elementos, entender/elaborá-los (conceituar, classificar, comparar, etc …) e decidir/interpretar (valorar, dissociar, sintetizar, concluir, etc …) – é exatamente a mesma estrutura de investigação da realidade-edifício.
Fica evidente que o não fomento da cultura literária implica em provável esterilidade intelectual. Equivale a supor que engenheiros levantem edifícios sem prévias maquetes.
Pouquíssimas pessoas sabem interpretar textos no Brasil e, logo, são também pouquíssimos os brasileiros inteligentes. Não só os exames internacionais como PISA, The Learning Curve atestam-nos no fim da fila do letramento, mas mesmo a experiência social direta confirma isso.
À guisa de exemplo, vide o caso dos advogados. Via de regra, mais de 80% dos bacharéis são cronicamente barrados no exame da OAB, exame esse que absolutamente nada tem de excepcional ou capcioso. A rigor, cuida de exame que peneira candidatos que sejam analfabetos brutos, pois dos 20% aprovados grande parte padece de analfabetismo funcional.
Este articulista é advogado e testemunha a situação deprimente de tantos e tantos operadores do direito capazes de i) copiar petições e despachos; ii) cumprir procedimentos; iii) empregar um pouco da memória meramente operacional e totalmente incapazes, por sua vez de: i) articular um arrazoado com definição da questão, desenvolvimento e conclusão; ii) usar ponto, vírgula, ponto e vírgula, separar parágrafos, iii) separar fato de opinião, impressão de juízos, deduções de conjecturas; iv) parafrasear textos que leia; v) usar conectivos de adição, de adversidade, de disjunção; vi) identificar ênfases e vieses textuais, etc …
Ou seja, se carente o ferramental textual básico, nem se pode cogitar no que é próprio da atividade judicial que é a “estratégia”, a capacidade de projetar cenários razoáveis e se antecipar a eles com uma malha articulada de opções e meios argumentativos já buscados para responder e mesmo criar dialéticas.
Tais contingentes “operam” no âmbito judicial porque há franca degradação do sistema jurídico como um todo do foco em SEMÂNTICA para foco em mero CUMPRIMENTO PROCEDIMENTAL.
Indague aos advogados ineptos se eles gostam de ler. A resposta praticamente uníssona é SIM. Indague daí qual o último romance que leram. Não lembram. Pergunte então dos contos. Igualmente não leram. Passe para crônicas, peças de teatro, tratados de juristas, obras científicas, etc … e a resposta é a de que não lembram.
Muito majoritariamente o que os causídicos leram são apostilas de faculdade, manuais e resumões legislativos, guia de modelos de petições, etc …, ou seja, nunca leram algo para aperfeiçoar a inteligência, coisa própria da cultura literária como aludimos.
Só leram coisas para passar na prova e ter alguma instrução imediatista de ação, tal como um operário de obra a quem se diz a função material imediata, mas sem necessidade dele conhecer a maquete porque, afinal, também não é o caso dele perceber o próprio edifício.
Mutatis mutandis, o que se passa no direito não difere das demais áreas.
Tirantes as exceções, quem não leu não intelige bem. E como que quem não intelige bem pode correr atrás do prejuízo como? A resposta é única: lendo.
Não se olvide, contudo, que há um fluxo necessário de progressão. É absolutamente impossível que quem não tenha a atitude leitora passe a tê-la iniciando com Dostoievski, Dante, Virgílio, etc … Há de começar com fábula, crônica, conto, novela, romances menores, etc …
Aí vem o grande problema: “vergonha de voltar”. Os quarentões, cinquentões, na maioria das vezes, têm vergonha de ler o be-a-bá da cultura e insistem na leitura do edifício sem ler a maquete e podem até se vangloriar disso. Afinal de contas, de gente não inteligente não se deve esperar solução inteligente mesmo.
SP, 25/11/20
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