042 – (Des)Amor – Dor, Sofrimento, Masoquismo e Voluntarismo

Autor: Vicente do Prado Tolezano 18/12/2018

Tão necessário à clareza do mapa existencial, como é discernir o PRAZER de FELICIDADE, é também o discernimento de seus opostos desses que são a DOR e o SOFRIMENTO.

DOR, no sentido próprio, é sensação/emoção bruta, que varia de um simples incômodo ao mais fundo desprazer. Se enquadra nas categorias da paixão ou estado.

Ela decorre de um mau afeto com algo do mundo – um encontro desgraçado (agressivo/violento). Muito a rigor, a dor é uma “percepção sensível” desse mau afeto e que alcança a todos os animais. Dor sempre é objetiva e tende, como todas as demais sensações, à efemeridade. Importantíssimo: dor é TÓPICA.

 O SOFRIMENTO, por sua vez, e como o próprio sufixo nominal “mento” denuncia, tem natureza de uma elaboração diferida no tempo, razão porque só pode existir nos animais que já gozem de estrutura de “imaginação”. No viés puramente negativo, varia de simples abatimento a fundas angústia e depressão, tal que, no seu crescente, ruma ao ATÓPICO/DISTÓPICO/AMÓRFICO. A partir de certos níveis, pertence à categoria da ação, e é predominantemente subjetivo, a cargo do sofredor.

Em síntese, SOFRIMENTO não é “emoção” como a dor, é “sentimento”, com contornos potencialmente mais “projetivos” que “perceptivos”.

Rigorosamente, o sofrimento depende da dor, no sentido de que não existiria sem ela, na medida em que é “projetivo” de dor ou “retro projetivo” de dor, sejam “dores novas” ou “dores já vividas”. A dor é que, por sua vez, pode, a priori, prescindir do sofrimento. Aliás, aí um grande desafio humano: padecer de dor sem sofrer ou, claro, sofrer pouco no pós-dor, ou ainda, METABOLIZAR o sofrimento.

Há inúmeros exemplos de vidas com muita dor e com pouco sofrimento bem como não escasseiam exemplos de vidas com pouca dor, mas com muito sofrimento! Seguramente, se o leitor inventariar as personalidades do seu entorno, irá constatar exemplos dos dois tipos.

Absolutamente ninguém gosta da dor, mas paradoxalmente muitos gostam de sofrer, ou seja, gostam dessa “dor-indireta” complacente com a dor no sentido próprio, que se visa ressuscitar dores passadas (ressentimentos) ou mesmo dar à luz dores novas.

É evidente que ao aduzirmos o caráter tópico e de efemeridade da dor, dissemos como um movimento de tendência. Algum sofrimento, puramente passivo-temporalmente diferido, também é necessário-natural como condição própria de que somos seres organicamente constituídos.

A extensão própria do diferimento temporal orgânico pode ser elucidada como o processo de digestão, que não deixa de ser um “encontro” com o mundo – “alimento”.

Ante a ingestão saudável, a digestão não implica dor nem sofrimento e, a seu tempo, metaboliza o que é para ser metabolizado e excreta o que é para se excretado. No extremo oposto, ante a uma ingestão manifestamente pútrida – doloridíssima de plano ao paladar – o organismo vomita a comida imediatamente, em movimento de autodefesa que tenta preservar a vida de sofrimentos.

Ante a ingestões tóxicas, de miríades de “venenos doces” ou de paladar até azedo, mas não extremo, a ingestão/dor pode se realizar até com algum consentimento de quem pseudo nutre-se. Deverá ficar com ressaibo ruim na boca (dor) e terá o sofrimento da “digestão pesada”, longeva, tormentosa e vacilante no alcance da excreção.

Se o processo dessa digestão pesada for muito extenso, a pessoa tende a ficar sem nutrição nova, de onde deficiências (até de anemia) serão óbvias e, em situações muito extremas, roubadas as possibilidades de excretar (cessar o sofrimento), o ser morrerá de congestão.

Quem não conhece os que passaram a ser subnutridos ou mesmo mortos por não excretar (cessar de sofrer) dores metabolizando alguma experiência? Obviamente, não nos limitamos aqui a dores/agressões/violências meramente físicas (mais simples até), mas incluímos as dores/agressões/violências morais-afetivas (mais significativas), como rejeição, injustiça, abandono, humilhação e traição, entre tantas outras, que são mesmo de digestões mais lentas, mas, obviamente, “digeríveis” também.

Tal como um se uma digestão orgânica se retarda além do natural, urgem os sais de fruta, o vômito induzido, a intervenção externa e etc… Se, à sua vez, o sofrimento moral-afetivo também não se esvai após o razoável, urge a intervenção, seja psíquica, espiritual, terapêutica, ressignificava ou outra, mas sempre de caráter VOLITIVO – da VONTADE DE NÃO SOFRER!

O preceito é aceitar a dor¹ e repudiar o sofrimento no que exceda ao razoável, garantindo a eficácia da excreção e da metabolização. Sem meias palavras: a partir de um ponto, não interferir no processo de sofrimento é VONTADE DE SOFRER, equivalente à VONTADE DE NÃO VIVER “METABOLIZADO” e “METABOLIZANDO-SE”.

Se a digestão (com metabolização e excreção) não se realiza e o sofrimento reina para além do razoável, como esse é distópico/amórfico, a pessoa PERDE A PRÓPRIA IDENTIDADE.

A dor, por ser tópica, nos afirma. A própria linguagem denuncia. Dizemos “temos/estamos com dor”. Ao sofrimento, já usam “estamos sofrendo” como “somos sofredores”, mostrando a transitividade fácil e sutil das ações de “estar” e de “ser”.

Quem não digere e fica sofrendo vai perdendo o senso entre causa e efeito, entre o alimento e o alimentado, tal como na congestão orgânica em que demais funções vitais vão “se estranhando” com a digestiva. Não deixa de ser uma espécie de autofagia.

Em bom português, o nome que se dá a quem não digere seus traumas/experiências/dores ou que busca levianamente “encontros sabidamente indigestos” é MASOQUISTA/VITIMISTA², cultor de sofrimentos/ressentimentos e que não METABOLIZA as experiências e, pois, se degenera pelo sofrimento.

Pede à pessoa muito MASOQUISTA/VITIMISTA para falar de si e verá como ela tem dificuldade grande de “pontuar dores” e ela tende a “generalizar sofrimentos”, corroborando a tese de que o sofrimento é predominantemente subjetivo. Normalmente, cuida de gente DISTÓPICA, com viés predominante de “projeção de mundo e de si”.

Pede às gentes doloridas e sem masoquismo/vitimismo sofredor (chamadas de VOLUNTARIOSAS) para falar de si e verá como eles conseguem bem pontuar as dores que sofreram, desde as pequenas de ordem física como as grandes de traições, injustiças, humilhações, etc…, e mostrar que SÃO SEPARADAS daquilo que EXCRETARAM. Tendem a privilegiar a “percepção” do mundo e de si.

Em casos de pessoas muito voluntariosas, elas podem até ter “alguma apreciação” por quem lhes trouxe dor que dera azo à metabolização/excreção passadas, justamente “afirmando o seu ser/caráter pelo suportar do sofrimento na extensão sadia/inevitável”, mas isso está longínquo de dizer que “gostam de sofrer”, pois tal é próprio dos MASOQUISTAS/VITIMISTAS.

Em profunda essência, somos a VONTADE DE SER, dimensão espiritual absoluta, também chamada por INICIATIVA (diferente do mero desejo, coisa da inércia material), e o SER QUE É EM SI, É FELIZ, mesmo com os encontros com o não ser.

Quem tem VONTADE DE NÃO SER, NÃO É EM SI E É SOFREDOR, pouco importando os encontros com o ser e o não ser.

¹ A “não dor absoluta” seria geradora de superlativo sofrimento, tema que vamos explorar em artigos futuros.

² Em termos precisos, o MASOQUISTA é o que gosta propriamente de sofrer e o VITIMISTA não necessariamente gosta de sofrer, mas ao menos “manipula” terceiros como se gostasse.

A reprodução do texto é livre, devendo ser citada a fonte e preservada a unidade do pensamento.

Vicente do Prado Tolezano é graduado em direito peça PUC/SP e Mestre em Filosofia pela Faculdade do Mosteiro de São Bento de São Paulo, com investigação sobre a Metafísica de Aristóteles. É diretor da Casa da Crítica e da Tolezano Advogados.

Tem formações complementares diversas na área da Gestão, Psicanálise, Mediação, Filosofia Clinica, Lógica e Argumentação e outras sobre a Alma Humana.

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