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Artigo de Vicente Tolezano

29/11/2019

É bom morar num país que autorize seus cidadãos a, querendo eles, ir livremente ao exterior, a expressar suas ideias, a decidir com quem casa e quantos filhos terá, a eleger sua profissão, escolher sua fé, leituras, amizades, etc … É ruim morar em países que proíbam ou restrinjam esses atos. O grande problema humano, contudo, não reside nessa questão.

As liberdades apontadas acima se dizem “liberdades circunstanciais ou políticas”, variáveis de sociedade a sociedade, por épocas e por x, y ou demais fatores que obviamente nos impactam muito, eis que “somos nós e nossas circunstâncias”, conforme ajuste que fazemos ao asserto do notável espanhol Ortega y Gasset (1.883 – 1.955 d.C.).

Afirmamos que esse é um sentido fraco de liberdade, ao menos para os fins propostos neste artigo, orientado à “liberdade metafísica ou essencial”, ou seja, a parte do “nós” na conjunção com as circunstâncias, a qual, ainda que aditiva, não tira a primazia do “nós” sobre as “circunstâncias”.

A rigor, VIVER, no sentido humano e rigoroso, é o resultado da articulação ativa (agir deliberativo) entre cada “eu” e “suas circunstâncias”, num esquema em que se a primazia for das circunstâncias, não há que se falar em “vida em sentido próprio”, mas de coisa de “vivos-mortos”.

O “eu-vivo” há de aceitar/assimilar as circunstâncias para as vencer, seja parte em síntese vitalizante ou parte em excreção purgativa num processo sucessivo e ininterrupto de deliberações intransferíveis a quem seja.

Vem do alemão Erich Fromm (1.900 – 1.980 d.C.) o asserto lúcido de que “a liberdade caracteriza a existência humana como tal”, claro que dizendo sobre a liberdade essencial.

O pensador alemão, aliás, não vislumbrava grandes diferenças ao problema efetivo da liberdade essencial se as circunstâncias políticas forem de um regime totalitário fascista ou de uma democracia, podendo o humano ser humano (livre) ou descartar sua liberdade (servo) em qualquer regime.

O judeu nu e espoliado que se portou ereto na câmara de gás exerceu in extremis sua liberdade plenamente metafísica, para muito além dos instintos não só gregários, mas até orgânicos, conforme Viktor Frankl (1.905 – 1.997 d.C) exemplificou e mesmo testemunhou.

Quem não conhece, por sua vez, pessoa que se acabrunha na cama e se dedica às lamúrias sem fim por conta de uma mancha na testa? Ou a que goza de preparo intelectual mas se “apega” só a trabalhos muito subalternos, recebedores de ordens/tarefas/instruções detalhadíssimas próprias de analfabetos funcionais. Ou a masoquista que entra em desespero se souber que seu sádico vai parar de lhe bater ou humilhar!

São das situações de (descartes de) liberdade acima tratada de que ora nos ocupamos e que não têm nexo com as liberdades circunstanciais, senão no subterfúgio expiatório.

Afirmamos que as defesas exacerbadas das liberdades políticas e circunstanciais são, no mais das vezes, subterfúgios apenas diversionistas-escapistas, algo como uma transferência pseudo-compensatória, senão mesmo bode expiatório, pelo não enfrentamento do problema humano real, que é o puro medo da liberdade essencial individual.

Essa, aliás, é a lógica medular do ativismo político (não confundir com “participação política”), o qual combina em si os dois mais comuns mecanismos de fuga da liberdade, que são: 1) a submissão a um chefe/autoridade; 2) conformidade a um grupo.

É óbvio que temos relações de super/subalternidade, bem como vida gregária.

A questão escapista se torna o caso quando o indivíduo dá/transfere voluntariamente às dimensões externas o poder decisório da própria vida e preserva para si só a fantasia de que decidiria alguma coisa, ou que “espontaneamente” integrasse grupo ou aderisse a chefes ou a pessoa (s), num esquema de “simbiose”. Passa a ser o “ser só de circunstâncias”.

A disposição psicológica de um indivíduo, em estrutura, são as mesmas de um grupo de pessoas, tendendo a ser pior nesse. O esquema de um masoquista que se descarta para servir ao sádico é facilmente, e em tantos casos visto, também um esquema coletivizado.

Todo masoquista, adjetivo apropriado a todo que descarta sua liberdade, produz a narrativa de fantasia ou mágica expiatória, incluindo até que seria sua missão sagrada servir ao sádico. Nos esquema grupais, cada um dos membros reforça a narrativa, que vira “dogma” após tantos ecos recíprocos.

Internamente, o que se passa, tal como Fromm mapeou, são estruturas psíquicas de sentimento de impotência e insignificância, que podem chegar a um ponto da pessoa não conseguir sequer “cogitar de se ver ou se ouvir”.

O medo da liberdade é, ao cabo, um profundo medo do “mistério sombrio do si”, projetado como um vazio que a externalidade só pseudo preenche, nem que seja por chicote, humilhação, servilismo, conformidade passiva, etc …, que seriam mais brandos ao masoquista que o “império da consciência”.

Nos casos muito extremos, até dor de automutilação física como diversionismo para não se ver nem se ouvir pode vir a ser o caso. Casos extremos não são o mesmo que raridades superlativas …

É óbvio que há muitas gradações sutis e complexas no esquema do auto descarte da liberdade ou castração de potenciais, variando desde o primeiro degrau do tímido vergonhoso de si, passando pelos inseguros, pelos múltiplos tipos de masoquistas simbióticos, até o último degrau do automutilador odioso de si.

Flutuações na disposição psicológica também podem ocorrer por questões circunstanciais diversas e a um ponto em que não há exagero em dizer que não existam pessoas corajosamente livres, mas sim, precisamente, que existam pessoas ex covardes servis. Nelson Rodrigues (1.912 – 1.980) abonava precisamente essa abordagem testemunhava isso sobre si.

Não existisse a capacidade de superar, óbvio que em gradações, o “mistério sobre o si”, com regozijo de estar consigo, não haveria que se falar em liberdade essencial, pois são a mesma coisa.

Não chame o livre, no sentido de quem significa-se apropriadamente e tira de si os potenciais para atuar, de egoísta, pois, via de regra, não é sua tendência. A prática de amor, aliás, só é possível aos absolutamente livres, tal que a maior liberdade é DAR pelo exercício desinteressado de DAR. Uma qualidade comum no livre é ele achar que “ninguém deve nada para ele”. Impossível pensar em alguém amoroso sem que esteja acendendo velas nas sombras de si.

O servo-masoquista, pela insegurança, é sempre INTERESSADO e, portanto, tem um anel com o egoísmo.

Tudo que o servo-masoquista vê, é pela lente de reforço da perspectiva de avaliar se o outro é também servo/livre e em que grau, para “ajustar” seu agir de sobrevivência/narrativa/fantasia pseudo preenchedora do vazio.

Ele pode perfeitamente manipular até o sádico para seguir sendo seu sádico, ou ser masoquista numa mão e sádico na outra, coisa, aliás, comum.

Fromm tinha razão ao afirmar que “o medroso de liberdade nunca é solidário”. Normalmente, eles acham que são, de algum jeito, credores dos demais, repetindo a semelhança não meramente coincidente com os ativistas políticos.

Também Nelson Rodrigues tinha razão ao afirmar sobre a liberdade essencial que ela “é mais importante que o pão” e em qualquer país ou regime político, acrescentamos nós.


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