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Não seriam 09h05 de mais um dia útil. Soou estridente o telefone na sala do Dr. Rolézio, advogado ainda na verdura da profissão e que, com muita firmeza, tem seu escritório no bairro dos japoneses em São Paulo, num “prédio misto”.

Faz tempo. Era uma época em que, inclusive, revestimento de papel de parede era bonito e ainda fazia contraste com um carpete marrom. Tudo era “apastelado” naquele escritório, numa altura em que o bolso do dono era furado e o gosto não era refinado.

O escritório era micro. Consistia no próprio Dr. Rolézio, a Lourdinha da recepção, o Jorge, que era office boy e a Helena, estagiária de “meio-período”. O Rolézio era o único “dono” do brinquedo. Até poucos meses tivera dois sócios, naquelas sociedades em que “mais se aprende que ganha”, mas o Rolézio tanto ganhou quanto aprendeu igualmente pouco, pois, à despeito das coisas óbvias nas suas relações com os ex-sócios, não conseguia sequer vislumbrar que eles padeciam do maior falso motor regente das gentes neste mundo, que se chama MEDO.

Falso motor porque ele não provoca movimento propriamente, senão na modalidade de movimento de fuga. Depois que se entende isso, é fácil driblar o mundo das gentes. Antes, contudo, se perde valioso tempo e energia achando que as gentes são gentes ao invés de farsantes de suas alminhas rasas e fugitivos incansáveis dos ecos das próprias entranhas.

O Rolézio e os dois sócios eram recém-formados. Apesar de só ter gente verde junta, a floresta cedeu espaço a flores, pois no parco de um ano e meio a micro banca encheu de clientes, indo na contramão do que sucede às bancas dos recém-graduados.

Era MUITO trabalho. Claro que um advogado macaco-velho tiraria de letra aquele volume de trabalho, mas os três pivetes não. Faltava, obviamente, destreza técnica, mas a carência funda mesmo era de fortaleza e alguma malícia.

Aliás, o que um advogado macaco velho traz de bom é conhecer o MEDO, o próprio, o dos clientes, o do adversário, do juiz, dos funcionários, etc. Se não dominou esse gato vestido de onça negra, não se avança. Não só na advocacia, mas em tudo o mais.

O fato é que, guardadas as proporções de gente pobre e mesmo escassez objetiva de dinheiro, o negócio bombava e, por paradoxal que seja na aparência, o MEDO, dos sócios do Rolézio, crescia mais e mais. Era daquelas coisas meio rodrigueana de que: “vai dar errado porque deu certo”. Medo de conseguir fazer o trabalho, medo de que o cliente não gostasse de algo, medo do advogado adverso, medo de que alguém vai criticar o trabalho, medo de ficar até meia noite no trabalho, medo do bicho-papão, medo do fantasma da ópera, medo do ET de Varginha, etc. Medo que não tem fim. Afinal, poucas coisas são tão leais à lei da inércia de aceleração crescente quanto o medo.

Obviamente, a corda rompeu. O Rolézio não segurava ser o único a pular de alegria sobre a mesa pela notícia de um novo cliente ou negócio e ver os sócios se escondendo sob a mesma mesa. Naquela altura, já estava sendo forjado à uma amizade que lhe seguia havia tempo: a solidão. Essa amizade se iniciou nos encontros noturnos, nas madrugada, aos sábados e aos domingos.

Mesmo depois de tantas e tantas discussões, até acaloradas, o Rolézio, já chegado naquele misto de maldição e bondade de abstrair o humano, não via as coisas do medo eruptivo.

Tinha uma coisa curiosa com os sócios: eles eram amigos em grau fundo dos funcionários, os pré-falados Lourdinha da recepção, o Jorge, que era office boy e a Helena, estagiária de “meio-período”. Almoçavam juntos, normalmente sem o Rolézio, pois este ficava trabalhando nas petições para aproveitar a “valiosa hora do silêncio” pela falta de gente. Batiam papo, iam a baladas no fim de semana, também sem a presença do Rolézio e pelos mesmos motivos pré-falados.

Claro que os funcionários cumprimentavam o Rolézio, mas era daqueles cumprimentos do script. Tudo e qualquer coisa que tinham a tratar eram com os sócios. Não tardou a hora em que a corda fina, quanto um fio de cabelo, da sociedade se rompeu. Foram-se os sócios. Ficou o Rolézio, a clientela toda, os funcionários, as responsabilidades por x, y, z e as contas de um negócio que ainda tinha que plantar e colher todo mês o suficiente para dar de comer no mesmo mês.

O trabalho já era duro e tinha tudo para ser, não só mais duro, mas impossível. Porém, por motivos que, só fora das aparências de superfície se entende, foi bem possível e até mais fácil. Diminua o número de medrosos do entorno e… MÁGICA! As coisas fluem melhor!

Mas, se até os sócios tinham-se ido por conta de MEDO (que só o Rolézio não entendia) o que dizer, pois, dos esquálidos funcionários, cujas almas eram amedrontadas até por uma sombra de camundongo! Eles se sentiram partilhantes das dores fundas dos ÓRFÃOS, sem pai nem mãe agora e face ao Rolézio, o “homi”, segundo o léxico de referência que eles usavam.

Voltemos ao início para às 09h05, horário tal em que algo molestou a concentração do estressado, tenso e exausto Rolézio. O simples tocar do fone já irrita, e muito mais na medida em que, pela hora, ficava claro que a Srta. Lourdes não chegara.

– Rolézio Advogados, bom dia!

– Oi Dr. Rolézio. É a Lourdes. Liguei para dizer que não vou trabalhar hoje. Estou aqui no Pronto Socorro de Pirituba com a minha mãe. Eu não passei bem à noite.

– Puxa, Lourdes. É coisa grave?

– Não. Eu acho que hoje eu já resolvo e devo voltar para o escritório amanhã.

– Tá, Ok. Te cuida aí e me avisa se precisar de alguma coisa.

– Tá bom. Tchau.

– Tchau.

Obviamente, o fluxo da vida do escritório houve de seguir sem a Lourdinha. Em um elástico já esticado, são alguns milímetros que podem fazer o estrago. Rearranja-se o trabalho, revê-se os afazeres do office boy, liga para a estagiária, etc. Mas, a tormenta maior dos já estressados é a p…. do telefone bradando trim, o que ficou constante ao longo do dia, estilhaçando qualquer pretensão de concentração séria do Rolézio. As intermitências no pensar imprimem desesperador senso de impotência.

Mas o dia passou sem a querida Lourdinha. O Dr. Rolézio tinha sincero apreço por ela sim. Ao cabo do dia, pensou mais de uma vez se ela estaria bem. Sentido puramente desinteressado mesmo. Ele acreditava nela. Aliás, ele ainda estava na fase de acreditar nas gentes, era plenamente convencido de que as gentes que não desabrocham ao sucesso não o fazem pelas circunstâncias opressoras externas.

A Lourdinha era menina pura, de 19 anos. Bonita. Veio para a entrevista de emprego acompanhada da mãe, que queria ver “se o lugar era bom para a filhinha”. Primeiro emprego. Um salto para quem vinha da periferia funda paulistana. A mesa de trabalho dela tinha copo para os lápis e canetas, de cor em formato da cara do frajola. As borrachas ficavam ordenadas por tamanho. Um elogio, um sonho de valsa sobre a mesa dela, dava-lhe ignição na motivação em atender o Dr. Rolézio, desde que, claro, a tarefa não invocasse coisa abstrata ou alocação de exércitos de neurônios.

De qualquer forma, era moça direita e que o Dr. Rolézio ainda acreditava poder conduzir ao crescimento. Curso de digitação, de atendimento e outros já lhe tinham sido providos e com alegria.

No dia seguinte, estava o Rolézio absorto na redação de alguma petição, distante anos luz de qualquer memória sobre a ida da Lourdinha ao doutor, quando a própria, às 09h00 exata, bate-lhe na porta.

– Bom dia, Dr. Rolézio – disse-lhe ela.

– Bom dia. Estou bem ocupado agora. É algo urgente?

– Sim, eu trouxe para o senhor o meu atestado médico de ontem. Está aqui no envelope.

– Ah, é. Você está bem?

– Sim, tou bem melhor agora.

– Que bom. Eu não preciso do atestado. Vai lá para tua sala que eu estou bem ocupado.

E a moça, com algum nítido constrangimento, foi-se à sua sala.

Horas adiante, quando o Rolézio voltava à sua sala, após alguma ausência qualquer, depara-se com o atestado médico da Lourdinha sobre sua mesa. Chama-a.

– Lourdinha, eu não preciso deste atestado. Toma de volta.

– É verdade sim que eu fui ao médico, Dr. Rolézio! Está aqui, o senhor pode ver. Eu trouxe também a receita dos remédios.

– Eu sei que é verdade, mas eu não preciso disso. Só preciso que você me conte que foi ao médico e está resolvido!

Ela saiu da sala e deixou o atestado sobre a mesa. Como o Rolézio tende a abstrair as coisas das gentes, pegou o atestado, pôs no lixo e seguiu a vida, envolvido com algum trabalho.

No outro dia, o Rolézio chegou mais tarde e depara-se sobre sua mesa com, novamente, o atestado da véspera que fora recuperado da lata do lixo pela Lourdinha. E, ainda, com mais um papel datilografado com o nome do hospital, seu telefone e o nome de um funcionário de lá, para que o Dr. Rolézio ligasse para checar a veracidade do tão valioso documento.

– Lourdes, eu não preciso de nada disso. Você ainda está nesse assunto? Preciso trabalhar agora.

– É verdade sim. Na outra vez que eu fui ao hospital, a Dra. Julia (a ex-sócia), falou que sempre tenho que trazer o atestado para provar. Eu fui porque fiquei doente. Juro para o senhor. Se quiser chama até a minha mãe que o senhor conhece.

– Lourdes, a Julia é a Julia, eu sou eu. Você me disse que foi ao médico e está ok, ponto final. Não fico olhando documento disso. Se eu não confiar na tua palavra, não vai ter papel que vai servir para nada. Eu não vou ler esse atestado e nem ligar para ninguém. Eu e você precisamos trabalhar e nada mais.

– O senhor não pode ficar desconfiando de mim. É verdade sim. Eu fui ao hospital. Pode ver, pode ligar para lá. Joooorge – berrou a Lourdes – vem cá!

O Jorge entrou e ela seguiu:

– o Dr. Rolézio não acredita em mim, ele acha que meus documentos são falsos. Conta para ele.

O Rolézio tomou a palavra:

– Lourdes, você é IMBECIL? Eu estou falando que não quero ver o documento porque confio em você e você fica falando que eu acho que teu documento é falso? Desculpe, mas você não tem nada na cabeça.

A menina-moça saiu, trancou-se no banheiro por pelo menos 30 minutos e abriu as portas da represa do choro com direito a soluços de mais de 100 decibéis. Saiu de lá com o rosto rubro-pálido meio refeito depois da crise. Mas, como sói ao ser feminino, não importando a juventude, empinou o nariz em gesto de esplendor da vaidade, saiu pelo corredor e pegou suas coisas. Ao cabo, disse ao Rolézio, que ainda estava estupefato:

O Senhor devia acreditar no atestado sim! Ele é de verdade sim!

Foi-se embora a Lourdinha por MEDO de acreditarem nela.

Autor: Vicente do Prado Tolezano

 


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Um comentário

  1. Roberto disse:

    Muito legal!

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